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Capítulo 12

Esta página reproduz um capítulo de
Formação Histórica do Brasil
de
João Pandiá Calógeras

Companhia Editora Nacional
São Paulo, 1966

O texto é de domínio público,
exceto para meus anotações.

Esta página foi cuidadosamente revisada
e la creio livre de erros.
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por favor me avise!

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Capítulo 14

 p289  Capítulo XIII

Emancipação e Abolição da Escravidão. Questão militar. Desafeição crescente. Queda do Império

Enquanto êsses acontecimentos tão graves ocorriam, carregados de significação para a formação nacional de nossa terra, o edifício de nossas relações econômicas se erguia em pleno desenvolvimento.

175. Economia nacional. — Durante a Guerra do Paraguai, o câmbio havia sofrido, descendo as taxas abaixo do par e atingindo mesmo a 15 pence por mil‑réis, por alguns dias. Já em 1871, a reação se deu, e as cotações ascenderam a 25 d, tendo oscilado até 1877 entre 24 e 27. O comércio internacional crescia sem parar; mesmo no período da luta armada, não havia diminuído: de 300 000 contos em 1866, tinha chegado de modo normal a 356 000 em 1871‑72, e a 400 000 em 1880, abrangendo importações e exportações. A curva de seu desenvolvimento era absolutamente regular, a ostentar um processo perfeitamente orgânico. Finanças e administração eram sadias, e, embora momentos de dificuldades tivessem de ser atravessados, tais apertos não comprometiam a situação, que, em seu conjunto, podia ser tida por satisfatória.

Em todos os ramos, ia melhorando a legislação. O primeiro recenseamento realizou‑se em 1872. As vias-férreas somavam 513 quilômetros em 1866, 932 em 1872 e 3 397 em 1880. Crescia a  p290 imigração, e já se sentia que a mão-de‑obra branca provaria a solução do problema servil. As linhas telegráficas ostentavam a mesma tendência ascensional: um cabo transatlântico fôra lançado em 1874. Rio de Janeiro recebeu a iluminação a gás; suprimento abundante de água e rêde sanitária estenderam‑se largamente. A instrução pública era objeto de intenso cuidado e progresso.

176. O ambiente político. — Todos êsses sinais de melhoria e de surto crescente, entretanto, não logravam acalmar o ambiente político. De 1871 a 1875, o tablado estava ocupada pela elaboração da lei sôbre a liberdade dos negros nascituros e a questão religiosa. A inextricável confusão e mistura dos partidos, por outro lado, dava a impressão de desordem e de corrida ao abismo. Ninguém poderia prever o que sairia dessa desorientação dos espíritos. Os republicanos, a passos vagarosos, mas seguros, estavam organizando suas fôrças, disputavam cadeiras nas eleições, quer nas municipais, quer nas provinciais; chegaram, mesmo, a quase elegerem um representante seu à Assembléia Geral, no pleito de 1876.

Acima de tudo, vibrava o ambiente com recriminações, censuras e críticas apaixonadas contra o Imperador, cujo "poder pessoal", como era vulgarmente chamado, se apontava como causa de destruição dos partidos, pelo fato de ser êle o regedor único do país, a impor sua vontade à comunhão na escolha e na demissão dos gabinetes, e no descaso absoluto das respectivas plataformas e programas.

Já explanamos como êsse poder derivava diretamente da Constituição, e pertencia exclusivamente ao Imperador. Ao aplicá‑lo, ficava o soberano estritamente dentro nos limites de sua autoridade legal. Além do que, à medida que os anos passavam, na mudança de tôdas as coisas e de todos os homens, permanecia êle o único elemento fixo, elo que se tornava entre os estadistas de Regência, alguns dêstes, mesmo, vindos da Independência, e as gerações novas. Ademais, redresseur de torts, protetor dos vencidos a garantir a prática do sistema rotativo nas substituições partidárias no govêrno, tinha o maior cuidado e empenho em que nenhum grupo político fôsse decisivamente esmagado. Para êle,  p291 a existência de dois partidos opostos, era uma exigência de bom govêrno. Nas lutas internas, era êle um amortecedor de choque, a ser louvado ou então espezinhado, conforme o núcleo de críticos e de agressores no poder ou fora dêle. Era êsse seu método de contrabalançar as opiniões, ficando acima de ambas, sem favoritos entre os chefes contendores.

Sua posição portanto, era de sacrifício pessoal e de desprendimento. Bem o sentira o monarca, desde verdes anos, e com intensidade crescente à medida que o tempo passava. Desde 1843, o velho sistema de o próprio Imperador escolher seus ministros, fôra pôsto de lado. Honório Hermeto recebera a incumbência de fazer os convites. Foi isto mera transição, pois em 1847 se criou a Presidência do Conselho, principalmente para dar maior unidade aos gabinetes, maior intervenção e responsabilidade aos partidos e a seus chefes.

Não poderia, contudo, agir o processo sem a exigência simétrica: existirem partidos, cônscios de seus deveres, com a madureza precisa para dirigirem seus esforços segundo diretrizes de alta política, mantendo‑se afastados de meras competições pessoais e da preocupação da partilha dos despojos. Ora, era justamente isto o que faltava.

Alguns espíritos superiores, é certo, estariam aptos para se desempenharem de tais deveres: com êstes, D. Pedro II seria um soberano modelar, e tal era o caso com Paraná, Saraiva, Rio Branco e poucos mais. Cada qual dêles possuía seu modo próprio de trabalhar e seus métodos particulares, e o Imperador se adaptava a essas modalidades: com a inflexibilidade de opiniões de Paraná, com a grandeza de ânimo, calma, nobre e honesta de Saraiva, com a dedicação sincera de Rio Branco ao Império e ao Imperador. Com personalidades de porte menos elevado, ansiosas por figurarem em ministérios, e, por êsse motivo, obedientes ao Soberano e a suas ordens, predominava a vontade imperial, não por culpa própria, mas por inexistência da vontade ministerial.

Por êsses mesmos motivos D. Pedro era contrário às fusões de partidos; mas, em tais manobras, os políticos e politiqueiros tinham a preponderância. Pela mesma razão, ainda tinha êle verdadeira ansiedade em fundar as vistas dos partidos na opinião  p292 real do país, isto é, em pleitos eleitorais sinceros. Dêsse modo sòmente, pensava êle, e pensavam também alguns dos verdadeiros chefes diretores da opinião, poderiam os partidos possuir autoridade indiscutível, baseada no sentir público, independente, embora harmônica, das convicções pessoais do chefe de Estado.

Êsse foi o ponto de partida de seus esforços enérgicos, pela era dos sessenta, para se descobrir algum meio prático de destruir a indigna máquina eleitoral vigente, que só mandava ao Parlamento maiorias do matiz do grupo no poder, fôsse qual fôsse êste e apesar do fato deprimente de que, a pequeno intervalo, havendo mudança de grupos dominantes, duas consultas ao eleitorado resultavam em duas respostas contraditórias. Dada essa situação deplorável, como podia êle acreditar nos partidos e seus métodos de interpretar a opinião real do país?

Nisso mesmo se baseava êle para pôr em prática o sistema de rotativismo, dando pelo menos a cada qual dos grupos ocasião de mostrar sua correspondência com o sentir da Nação.

177. A reforma eleitoral. — Depois das gravíssimas ocorrências do período de 1870 a 1875, e sob a ameaça da tormenta que se sentia chegar de todos os quadrantes do horizonte político — fazendeiros, possuidores de escravos, clero, classes armadas mal satisfeitas, — sentiu êle, mais fortemente do que em ocasiões passadas, que o antídoto único seria combater o veneno partidário com o apêlo leal e livre à opinião do povo. Até então, a eleição se realizava em dois graus: os eleitores primários, ou votantes, escolhendo os eleitores definitivos; êstes, elegendo os representantes. Dava lugar tal sistema a tôda sorte de irregularidades, Carolina por todos, indistintamente, única falta moral para o partido no poder, o perder a eleição. E, para tal fim, qualquer processo, por mais fraudulento fôsse, era admitido.

Era pensamento bastante generalizado que a eleição direta por distritos de um só deputado poderia solver o problema. Como sempre, aí prevalecia a persuasão ilusória e ingénua de que a lei é capaz de prevenir falhas morais! . . . Assim como assim, tal modo de ver as coisas se apoderou dos políticos dominantes, e, acima de tudo e de todos, foi aceito pelo Imperador, ansioso para se ver livre das irregularidades repulsivas dos comícios.

 p293  Multíplices eram as dificuldades. O Senado não era favorável a qualquer mudança: conservadores, firmes no poder, relutavam em alterar uma legislação que lhes garantia uma maioria coesa, enquanto os liberais não eram chamados ao govêrno, por ato do Poder Moderador; os próprios liberais tinham sôbre o assunto opiniões divididas. Uma objeção prévia se impunha: tal inovação exigia uma emenda à Constituição. Escolheu‑se, por isto, D. Pedro II, tais eram os óbices que se antolhavam ao se modificar o Estatuto; assim também pensavam muitos senadores e deputados. Os programas publicados, liberal, radical e republicano, favoreciam a temporariedade do Senado, e a abolição do Poder Moderador e do Conselho de Estado; a opinião pública tinha ficado impressionada com tais alterações, e quantos estavam colocados, beati possidentes, hesitavam em incorrer no risco de perderem o que já possuíam.

Apesar de tudo, D. Pedro insistia; pôde obter dos chefes conservadores que seu partido assumiria a responsabilidade de promover as necessárias alterações. Pensou então o Imperador, e tornou pública sua convicção, que era dever seu respeitar a propriedade política da idéias partidárias; assim, os liberais deviam subir ao poder, para assegurarem o êxito da reforma. Era pensamento geral que a eleição direita salvaria o Império, e todos os monárquicos o proclamavam. Divergiam, porém, os pareceres quanto aos meios a empregar para tal resultado.

Pensava um grupo que uma reforma constitucional seria precisa. Tal processo parecia perigoso a outra gente, pois poderia abrir a porta a reformas muito mais graves, inaceitáveis para o Senado, os conservadores e para o próprio Imperador. Líderes de um outro matiz de pensamento declaravam que o método melhor a seguir seria uma lei ordinária; a isto se respondia que uma lei poderia ser revogada, anulada ou modificada por outra lei, enquanto uma disposição constitucional mais difìcilmente se alteraria.

Em realidade, D. Pedro queria a eleição direta e, embora não desejasse tocar no Estatuto de 1824, aceitaria êsse processo, se fôsse indispensável para obter o primeiro alvo. Assim, ao chamar os liberais para formarem o govêrno, em 1878, o tema a ser desenvolvido seria a reforma constitucional para se garantir  p294 a eleição direita. Foi um êrro chamar‑se Cansansão de Sinimbu para semelhante tarefa, como presidente do Conselho: faltavam‑lhe autoridade e as qualidades para dirigir tal campanha. Perdeu dois anos em escaramuças, tendo finalmente de se retirar do govêrno.

Apelou então o Imperador para o senador José Antônio Saraiva, e lhe pediu para organizar o gabinete. Respondeu o homem de Estado que suas vistas divergiam completamente das de seus predecessores: pensava êle que se deveria obter a reforma por um simples lei ordinária, sem se tocar na Constituição. Deu‑lhe o Soberano liberdade plena de ação, como que um cheque político em branco. Na execução de tal programa, tranqüilizou o Senado e os conservadores, e, em vez de sua oposição, conseguiu sua colaboração. A 9 de janeiro de 1881, a lei foi promulgada, estipulando o processo da eleição direta, e, pela primeira vez, firmando o princípio liberal da capacidade eleitoral dos católicos e dos libertos.

O nôvo texto foi recebido pela Nação como uma dádiva de liberdade, a mais admirável da causa liberal, exclamou Rui Barbosa, que então iniciava sua gloriosa carreira. Saraiva tornou‑se o mais destacado estadista de seu partido. Depois de ter presidido ao pleito para o nôvo Parlamento com isenção de ânimo tão superior e tal eminência de imparcialidade e honra, que dois de seus ministros foram derrotados, todo o país o aclamou como personalidade muito acima das contendas partidárias, e era dizer comum o chamá‑lo o vice-imperador.

178. Seus pontos fracos. — Dentro em prazo curto, a prova foi dada de que os partidos não queriam tal imparcialidade governamental, e que seus ideais eram o esmagamento do adversário por qualquer forma, o sistema dos despojos. A lei, da qual se faziam tão ruidosos elogios, havia produzido seus resultados benéficos e moralizadores com um Saraiva à frente do gabinete, para impor seus intuitos de honesta observância do código eleitoral. Nas mãos de Cotegipe, chefe conservador de mor valia, como presidente do Conselho, em 1886, a mesma lei permitiu excluir quase completamente do Parlamento o partido liberal. A chave da situação eleitoral era, portanto, como bem se compreende,  p295 o nível moral do chefe do govêrno: sendo êste um estadista, acima do nível e das metas dos grupos, que considerasse o país em primeira plana, segundo o tipo de Saraiva, o resultado era um; quando dominava o interêsse do partido, e a êle obedecia o presidente do Conselho, o espetáculo mudava por inteiro. E, entretanto, todos os verdadeiros guias políticos da Nação sabiam que eleições honestas significavam vida ou morte para a monarquia.

Desde que se colocasse o interêsse partidário acima do Império, não tinha o Soberano inteira razão em seu sistema de consultar a opinião pública por meios extra-parlamentares, e, assim, exercer como que uma política de equilíbrio entre liberais e conservadores, por meio de seu método de rotativismo no chamá‑los sucessivamente ao poder?

Tal falência dos partidos não era a dificuldade única do momento.

179. A libertação dos escravos. Joaquim Nabuco. — Após a liberdade concedida aos nascituros negros, a emancipação dos cativos entrou em período de hibernação e de sossêgo. Esta era, precisamente, a intenção dos promotores da lei, a fim de não perturbar a produção e de não levar ao desespêro os fazendeiros, afastando dêstes o intuito de lançarem mão de medidas extremas e de revoltas. Mas era tarde: como por aquêles dias se fazia notar, havia sido pôsto a rolar um rochedo, e nenhuma fôrça humana seria capaz de deter sua queda.

A idéia inspiradora de todos os grupos políticos era, contudo, evolucionista, exclusiva de qualquer processo ou método de apressar o fim natural da instituição servil: não nasceriam mais escravos no Brasil; a morte eliminaria progressivamente o saldo existente de negros; ano por ano, um fundo de emancipação reduziria o número dêles. Corresponderia tal programa a uma sobrevivência de mais uns trinta ou quarenta anos para a fração escravizada dos habitantes do Império, que talvez se arrastasse por tal forma até proximidades de 1910. Possìvelmente, o refôrço dos recursos emancipadores lograsse permitir prever a abolição para os anos últimos do século XIX. Com essa solução, os antigos proprietários de escravos estavam conformados e se  p296 estavam preparando: a êste acôrdo tácito se deve o período calmo decorrido de 1871 a 1878.

Um elemento nôvo, entretanto, havia surgido e agia como fermento no ambiente fàcilmente vibrátil: Joaquim Nabuco, falecido como embaixador nosso em Washington, fôra eleito para a Assembléia Geral. Com êle, a direção legal, conservadora e pacífica do temeroso problema ia derivar para regiões desconhecidas e perigosas, em uma atmosfera de sentimentos exaltados, de filosofia, de liberdade e de amor cristão.

Complicação incalculável para espíritos e interêsses, que não queriam ser perturbados e forçados a meditar e agir! . . . Ainda para aumentar dificuldades, vibravam as massas populares ao influxo de sua admirável eloquência, movida pela nobre causa de liberdade humana em que o tribuno se inspirava, e pelo choque moral formidável infligido nas consciências adormecidas que despertavam a látegos de auroras, forçando‑as a refletir sôbre coisas e situações que, dantes, haviam sido aceitas sem análise.

Invocava princípios, desde longos anos ausentes no estudo da questão: a dignidade da vida humana, o liame fraterno da criação, a imoralidade imanente de uma vida social fundada na injustiça e no mal.

A princípio, as gentes sentiam ofuscada sua visão por essa nova luz projetada sôbre horrores e abismos, não percebidos até então. Dentro em pouco, entretanto, a vidência meridiana não mais se pudera negar, e Nabuco avultou profeta de um evangelho nôvo. Sòmente aquêles que viveram êsses dias de catequese social e moral podem narrar o surto formidável do abolicionismo, a lava candente das expressões que ferreteavam infâmia na instituição, a cruzada entusiástica promovida por essa prédica geral de um nôvo credo de liberdade.

Contra êle, apóstolo dos cativos, tôdas as fôrças conservadores se uniram. Não foi reeleito para a sessão legislativa de 1881‑84. Na seguinte, porém, mais uma vez ingressou no Parlamento, em 1885, e novamente em 1887‑89.

Em 1880, havia proposto um projeto de lei, pondo têrmo à escravidão no fim de dez anos; a Assembléia derrubou a iniciativa. Compreendeu Nabuco que uma larga propaganda prévia se tornava necessária; iniciou, então, a formação de aderentes e  p297 de partidários, a publicação de brochuras, de artigos na imprensa diária e deu comêço a conferências abolicionistas. Pouco tempo depois, fundou uma associação tendo por alvo a abolição, a Sociedade Brasileira contra a Escravidão. Tal foi o grande instrumento de forçar a atenção e quebrar o silêncio impôsto ao Poder Legislativo pelos interêsses escravistas. Não era mais possível manter a emancipação fora do teatro político, nem fazer calar a grande voz de protesto da consciência humana.

Os discursos e o entusiasmo de Nabuco tinham influxo vasto e repercutiam elètricamente de Norte a Sul. Archote incendiário e permanentemente agitado, acendia fogueiras pelo Brasil todo. Formou‑se verdadeira rêde de clubes abolicionistas. A Confederação Abolicionista, do Rio, era o centro do movimento. Já o problema estava sofrendo uma mudança, transformando‑se de uma questão política e econômica em uma vasta angústia de sentimento ferido e de liberdade. Entrou a decidir da sorte dos gabinetes ministeriais.

Saraiva havia oferecido o pedido de demissão do ministério que presidia, e Martinho Campos, a 21 de janeiro de 1882, fôra nomeado presidente do Conselho. Seu programa de gabinete não mencionava a questão servil, e era sabido que sua opinião era favorável ao statu quo, a fim de deixar a abolição resultar das leis vigentes e dos fatôres naturais. Em junho do mesmo ano, foi derrubado por um voto em questão incidental, mas já então era público que, de sua maioria, grande parte divergia dêle quanto à abolição.

Sucedeu‑lhe o Visconde, mais tarde Marquês de Paranaguá; êste viu‑se obrigado a mencionar a questão no programa do seu govêrno, e a prometer ocupar‑se dela.

A 24 de maio de 1883, Lafaiete Rodrigues Pereira recebia a missão de formar gabinete; declarou que tencionava apressar a extinção do instituto servil pela intensificação dos recursos emancipadores e proibindo a exportação interprovincial dos cativos. Não teve, entretanto, tempo bastante para o fazer, efémero como foi seu ministério. O chefe do nôvo govêrno, a 6 de junho de 1884, foi o senador Manuel Pinto de Sousa Dantas, que insistiu na mesma nota.

 p298  As condições do país, entretanto, iam ràpidamente mudando, em rumo importantíssimo e fundamental. As exigências abolicionistas cresciam de dia para dia. Surgiam de todos os lados resistências novas à prolongação do estado da questão das escravaturas.

180. Conquistas iniciais. — Fortaleza, pôrto e capital da província do Ceará, era péssimo ancoradouro, e tanto os embarques como os desembarques tinham de se realizar por intermédio de embarcações pequenas e insubmersíveis, as chamadas jangadas, únicas que conseguíam vencer os mares bravios dessa costa. Eram seus tripulantes os jangadeiros, assim chamados pelo nome de seus barcos, e tinham em suas mãos a chave de tais transportes. Movidos pelo generoso entusiasmo geral, fizeram parede e declararam não mais consentirem em carregar escravos, quer para fora da província, quer para introdução nesta. Desta forma, ficava bloqueado o movimento de negros para Norte e para Sul. O número de cativos ia em decréscimo rápido, até que, em 25 de março de 1884, foi a província declarada liberta por completo.

A 10 de julho do mesmo ano, o mesmo esfôrço teve por teatro a província do Amazonas, que então figurou em segundo lugar na lista das circunscrições livres. A 18 de setembro, em memória da capitulação paraguaia em Uruguaiana, três municípios rio‑grandenses-do‑sul emanciparam seus antigos escravos, e um mês depois a cidade de Pelotas libertou 5 000 negros. No Rio de Janeiro, a Câmara Municipal criou um fundo especial para o mesmo fim. Em seis meses, o Rio Grande do Sul havia forrado 35 000 cativos.

Além de ser abolicionista, o senador Sousa Dantas via‑se forçado a dirigir e guiar o movimento. Era um compromisso moral seu, pois D. Pedro II o havia escolhido e chamado ao govêrno precisamente porque era conhecido o fato de que o estadista queria mais do que reforçar simplesmente o fundo de emancipação. Tinha êle a intenção de libertar os velhos escravos de mais de sessenta anos de idade, o que significava restituir à vida livre cêrca de 150 000 indivíduos. O Parlamento não quis, entretanto, dar‑lhe seu vota de aprovação, e pôs o gabinete em minoria de sete votos. Dissolveu‑se então a Câmara; uma eleição  p299 renovadora teve lugar sôbre êsse mesmo problema, e na nova Assembléia, em uma questão incidente, mais uma vez o govêrno ficou em minoria, por dois votos apenas. Retirou‑se Dantas, mas já agora era materialmente impossível silenciar sôbre o magno assunto.

A 6 de maio de 1885, Saraiva subiu ao poder com o programa definido de acompanhar o movimento abolicionista. Ficou no govêrno apenas o tempo preciso para assegurar a passagem da lei correspondente na Câmara dos Deputados, e obter dos conservadores do Senado a promessa de a adotarem; durou isso sòmente dois meses. Essa foi a lei de 28 de setembro de 1885, pela qual o limite da proposta de Sousa Dantas se elevava de sessenta a sessenta e cinco anos, o que abrangia 120 000 negros. Notável, e notado, foi que a medida não provocou distúrbio algum nem prejudicou por forma alguma a produção cafeeira. As falhas, na mão-de‑obra, foram suprimidas pela imigração.

À medida que o tempo corria, crescia a ansiedade por ver apagada a mancha negra do pavilhão nacional. Provavam as estatísticas que na província do Rio de Janeiro, o reduto central do escravismo, de 1873 a julho de 1885 haviam sido dadas 21 052 manumissões: dessas, 15 132 haviam sido doações espontâneas dos antigos donos de cativos. Recorria‑se a todos os meios e pretextos, legais ou não, para apressar o fim do instituto.

Improvisaram‑se organizações para auxiliar a evasão dos negros das fazendas, para contrabandear através dos perigos e dificuldades das tentativas recapturadoras e para os guiar e esconder em lugares escusos onde seria impossível ir buscá‑los, e menos ainda reconduzi‑los a seus antigos senhores. O clero pregava contra a inumana noção, ofensiva à bondade de Deus, da propriedade do homem pelo homem. Os magistrados exageravam as nugas processuais, ou mesmo enxergavam falhas onde elas não existiam, com o fito de concederem habeas-corpus, por vêzes coletivos, aos negros fugidos, aos quais davam auxílio permanente e técnico numerosos advogados e legistas. Esboroava‑se o edifício servil.

Prêsa do desespêro, os fazendeiros procuravam obter do govêrno a colaboração do exército, que deveria caçar os escravos fugidos e tornar a entregá‑los a seus senhores para serem reconduzidos  p300 ao cativeiro. O Clube Militar, em mensagem generosa e respeitosa enviada em 1887 à Princesa Regente, implorou ser dispensado de tal missão vergonhosa de capitão do mato. Nenhuma resistência, pois, se revelava capaz de opor um dique à corrente libertadora. Os antigos senhores, os que ainda possuíam escravos tinham de cruzar os braços e assistir, impotentes, quando não os auxiliavam, ao êxodo general das fazendas, que os negros abandonavam em pleno dia.

Na província de São Paulo, onde era mais intensa a campanha abolicionista, nas morrarias circunjacentes à cidade de Santos, mais de 10 000 negros fugidos se ocultavam. Ninguém o ignorava; eram auxiliados e protegidos. Mais do que isso, o simples fato da fuga generalizada criava o movimento de abandono das fazendas e dava lugar à formação de um sentimento de revolta contra os fazendeiros que se rebelavam, ou tentavam obstar à tendência de desamparo dos cafèzais. Nesses lugares, violências possíveis eram um constante perigo e uma ameaça sem fim, e mais ainda se assumisse o caráter de revolta negra contra a população branca. O sentimento cristão, despertado por último; o receio de derramamento de sangue, também; a impossibilidade absoluta de represar a torrente, finalmente; tôdas essas causas juntas cooperavam para acelerar a preamar das libertações. Os próprios senhores começavam a forrar seus cativos.

Na província do Rio de Janeiro, de um só traço de pena, dois dos maiores proprietários de escravos, os condes de São Clemente e de Nova Friburgo, deram liberdade a 1 909 negros, em 1887.

Desde os meados de 1887, a causa da abolição era um fato vitorioso, uma irresistível corrente nacional, não mais discutida pela lavoura. A única questão era cuidar de uma receita que evitasse a ruína de milhares de fazendeiros, que, baseados na fé que merecia a Constituição Imperial, assim como a lei, haviam pôsto suas fortunas em terras, e, em pura verdade, constituíam a parte maior do elemento preponderante e melhor do Brasil social: a base conservadora de uma classe que contava as melhores famílias, esforçadas, trabalhadoras, prudentes, do melhor sangue da terra, patrióticas estuantes de energia. Valôres, êsses, todos êles fadados à destruição, cujo destino já estava decretado.

 p301  181. A abolição. Isabel, a Redentora. — A idéia de indenizar a propriedade escrava prestes a se extinguir não era tolerada pela opinião pública. Era um sentimento complexo. Não há dúvida de que chocava o sentir geral como o preço do sangue, o comércio da carne humana. Havia sido uma propriedade legal, entretanto, e ainda o era. Nesse assalto contra o instituto servil, desempenhavam papel, em parte, os eternos ódios dos que nada possuem contra os que têm riqueza: a revolta dos pobres, ou do popolo minuto, contra os potentados, ou o popolo grasso das Repúblicas italianas da Renascença. E sôbre os herdeiros de uma situação, velha já de séculos, recaía o espírito de vindita de um santo furor, ansioso por destruir a instituição.

Nem podia ser por outra forma. A nobre propaganda de Joaquim Nabuco e de seus partidários, especialmente de um negro quase genial, José do Patrocínio, havia tomado por alicerce de sua ação o sentimento, a justiça, a alma cristã: não queria, nem podia aceitar compromissos com paixões inferiores, ou mesmo meros interêsses. O ano de 1885 fôra a data crítica; até então, com Dantas e Saraiva no poder, a emancipação tinha sido o pensamento dominante; as concessões consentidas nesse momento haviam exaltado e fortalecido a corrente idealista, e, já agora, nada menos do que a libertação imediata lograria corresponder à exigência absolutamente generalizada pelo Brasil inteiro, posta de lado a minoria, e sempre em via de desaparecimento, dos donos de fazendas.

Assim, quando Cotegipe pediu demissão do govêrno, a 7 de março de 1888, por sua repugnância em vibrar o golpe final, estava êle próprio em minoria no seu próprio partido, o conservador, pois outro chefe conservador de alto prestígio, João Alfredo Correia de Oliveira, um ministro do antigo gabinete Rio Branco, de 1870, já estava indicado para lhe suceder, com o programa decisivo de fechar a fase escravista da história do Brasil.

A 8 de maio de 1888, foi apresentado o projeto do govêrno a Câmara dos Deputados pelo ministro da Agricultura, Rodrigo Silva. Sua redação dera lugar a discussões prévias, mais se fixara definitivamente em um artigo único abolindo a escravidão. O artigo segundo era a providência ritual revogando as disposições em contrário.

 p302  A 13 de maio, teve lugar a sanção.

Duas memoráveis manifestações deram ao ato sua enfática significação.

Paulino José Soares de Sousa, chefe da dissidência conservadora adversa à abolição, assentou em receber o golpe mortal com elegância, à mourir en beauté, praticando um gesto que relembraria os gladiadores da antiga Roma, morituri te salutant. Era sabido que a Princesa-Regente D. Isabel havia descido de Petrópolis, onde estava veraneando, para não retardar de um minuto sequer o momento da liberdade dos cativos. Paulino subiu à tribuna do Senado, e pronunciou um discurso curto, impressionador pela sua mesma gravidade. "É sabido, e tôdas as fôlhas que li esta manhã dão notícia, que Sua Alteza Sereníssima a Princesa-Imperial Regente desceu de Petrópolis e à uma hora estará no Paço da Cidade à espera da deputação desta Casa a fim de sancionar e imediatamente promulgar a lei que V. Excia. acaba de submeter à deliberação do Senado. Quanto me permitiram as circunstâncias, cumpria meu dever como senador. Agora vou cumprir meu dever de cavalheiro, não fazendo esperar uma senhora de tão alta jerarquia".

O Barão de Cotegipe tinha resistido até às últimas ao voto de medida. Chamou‑o a Princesa-Regente, e, mostrando‑lhe o entusiasmo geral provocado pela lei de abolição, lhe perguntou se não fôra acertado votá‑la. "Vostra Alteza redimiu uma raça, mas perdeu seu trono", foi a profética resposta.

Anos depois, a nobre Senhora, de tão alta mentalidade cristã, abençoada por milhões de brasileiros e aclamada Isabel, a Redentora, teve a energia de afirmar: "Mesmo se nesse tempo eu tivesse podido adivinhar o que tinha de acontecer, teria agido pelo mesmo modo." Para quantos tiveram a honra de conhecer o altruísmo e as virtudes exaltadas dessa alma de escol, tais palavras encerram expressões da mais pura sinceridade. Glorificada e bendita seja sua memória! . . .

182. Abandono do ideal monárquico. — Vindo quando veio, a lei quase que foi sòmente a sanção de um fato preexistente. Era a conseqüência inevitável de irresistível opinião nacional. Contra ela, nenhuma oposição se fizera sentir desde 1887, e a  p303 única questão era saber como se faria face à ruína dos fazendeiros.

Grande êrro houvera sido enfrentar o temeroso problema na base da indenização. O ambiente social, tanto quanto o político, não admitiria tal idéia. E como nenhum sucedâneo se tinha achado para tal medida de compensação, desapareceu e naufragou o fator único de estabilidade, de contrapêso às tendências excessivas dos elementos triunfantes. As perdas econômicas e a ruína da propriedade privada não foram, por certo, as conseqüências mais lastimáveis do grande bem que foi a abolição; o desastre irremediável, sim, foi a destruição súbita do prestígio e do influxo social de uma classe que, de fato, representava os melhores elementos do Império.

A classe verdadeiramente superior do Império, superior em experiência, em prudência, em pendores conservantistas e em conexão com instituições, sentiu‑se decapitada; como conseqüência, romperam‑se seus liames com a monarquia. Havia contraído com esta um pacto de interêsses comuns. A nova lei o havia rôto. Daí decorriam desafeições, ódio e queixas amargas de abandono.

Largo número de eleitores, embora não a maioria do partido conservador, passou‑se para os antigos adversários, parte para os republicanos, mas em mor porção para os abstencionistas. Era o sentir geral que a monarquia havia falhado, e que algo nôvo era preciso. Que poderia ser? Ninguém sabia descortinar o futuro.

A República? Por que não? Mas era uma tendência, muito mais do que um alvo definido.

Idêntico movimento centrífugo ocorria no Exército.

Os velhos chefes, de major para cima, que haviam combatido no Paraguai e ainda se recordavam do Imperador e de que êle, e êle sòmente, se tinha mantido firme ao lado dos alvos nacionais da guerra sustentada pelas classes armadas, experimentavam por D. Pedro II estima e gratidão. Depois da paz, entretanto, a intensidade dêsse sentimento começou a decrescer. O monarca era um homem de letras e de ciências, e sua queda se manifestava por atividades intelectuais e sociais. Patriota cheio de alma, não tinha pendores militares, nem entendia o vasto quinhão que  p304 se poderia e deveria devolver sôbre Exército e Armada como fatôres assecuratórios da unidade nacional, defensores do país a colaborarem na educação popular de uma nação ainda por demais afastada da fusão de seus elementos formadores, para que pudesse dispensar um instrumento homogenizador e de tal valia. Dessa insensível indiferença oficial resultou a penúria de recursos técnicos do Exército e da Armada.

Assim acontecera também nos dias da Independência. A simpatia escassa do Parlamento, contrariando todos os planos de D. Pedro I, ansioso por melhorar a situação das fôrças armadas, fôra a causa essencial da perda da Cisplatina. O mesmo descaso legislativo, para não dizer sua má vontade, dera origem às dificuldades com que lutara a Regência; agravadas pela noção errada de dirigir, quase comandar tropas no campo de batalha, partindo as ordens do Rio de Janeiro, sob a inspiração de politiqueiros e de ministros incapazes.

Desde sua meninice, tinha D. Pedro II recebido essa mesma opinião; de todos desconfiando, como era sua tendência, intrometia‑se em tudo e, por isso, muitas vêzes atrapalhava a energia e as obras de profissionais bem intencionados e convenientemente orientados. O Exército e a Armada, que êle estimava deveras, ocupava sòmente lugares mais remotos em suas cogitações. Durante a guerra, ao contrário, a êle havia dedicado todos os seus esforços e pensamentos; cessada ela, porém, voltara a seu feitio mental anterior, embalado pela vitória de 1870.

Sentiam os oficiais, malgrado sua afeição dedicada ao Chefe da Nação, que o Imperador não experimentava pela classe militar predileção notável. Os problemas militares, as exigências e as necessidades técnicas, apresentadas ao govêrno embora, caíam no olvido e no abandono; as escolas profissionais perdiam cada vez mais seus característicos de treinamento especial de matéria de guerra, e transformavam‑se em institutos de ensino científico comuns, e finalmente em centros de propaganda filosófica e republicana.

Desde a crise de 1868, com Caxias, e o movimento hostil contra a monarquia e o monarca, a brotar nos programas partidários liberais, radicais e republicanos, estava sendo o Império batido em brecha pelos próprios monarquistas de todos os matizes.  p305 Os republicanos baseavam seu ataque ao trono nos próprios dizeres e acusações postos em linha pelos seguidores do regime e da dinastia. Nos anos últimos dos oitenta, não seria exagêro afirmar que, de major para cima, a maioria das patentes era de imperialistas; mas de tal nível para baixo, o aspecto dos sentimentos se invertia e a opinião dominante era fortemente favorável à República.

Outra causa de amargura existia. Ao contrário do que ocorria em outros países, com largas tradições militares, a tendência inabalàvelmente pacífica do Império, por um lado, e os defeituosos processos de recrutamento para a tropa, por outro, faziam do Exército uma classe distinta e separada no seio da Nação. A Norte e a Sul do Brasil menos do que no Centro, mas neste reinava certa indiferença quanto aos oficiais quando lhes não era manifestada antipatia positiva; êles, como era natural, se ressentiam dessa mal disfarçada malevolência, e reagiam pelo debique, pela crítica acrimoniosa e pelo desprêzo do elemento paisano. Especialmente quanto aos políticos, curioso fenômeno ocorria: negavam‑lhes competência, meros empiristas que eram, diziam êles, sem base científica positiva. Era isto uma conseqüência de lições mal assimiladas de filosofia positiva. Do influxo conjunto de todos êsses fatôres, nascia uma repugnância zombeteira para com Parlamento e ministros e surgia uma noção de superioridade dos militares sôbre os fazedores ignorantes de leis, que ignoravam matemática, bacharéis, como diziam com inocente desprêzo.

Tal sentimento ainda persiste, talvez ligeiramente atenuado, hoje em dia.

Superioridade moral, também, dizia êles: haviam dado existência, sacrifícios e sofrimentos ao bem do país, enquanto os civis e os grupos no poder não passavam daquilo que, em mútuas e contínuas recriminações, se atiravam recìprocamente em rosto um bando de pretendentes a favores de tôda sorte, ávidos, egoístas e sem escrúpulos.

O gesto de Caxias, em 1868, perfeitamente normal e inteligente do ponto de vista técnico — a impossibilidade material de desempenhar uma missão oficial, com um govêrno que não concedia seu auxílio moral como a situação o exigia, e consentia  p306 em que seus amigos atacassem pelas costas os combatentes; tal conflito não era compreendido pela massa e pelos chefes políticos, ignorantes da mentalidade militar, de suas exigências e de sua alma. Ao pundonoroso proceder, se considerava como mero brandir de espadas ante os olhos de civis desarmados.

Tal estado peculiar de espíritos atemorizados, entre as fôrças partidárias, gerava nos militares a convicção de que uma intervenção da tropa era possível e não seria estranhada. Associava‑se tal noção a um real sentimento de solidariedade, esprit de corps, e ia dando lugar a que surgisse lentamente uma como que ainda indistinta tendência messiânica: o Exército, o puro, o incorruto, tinha uma tarefa moral a cumprir, regenerar a vida pública do país. Começou a desenvolver‑se uma doutrina especial: os soldados haviam sustentado a Independência; os soldados haviam combatido e sofrido para assegurarem a unidade nacional; os soldados haviam salvado o país no decurso da guerra. Uma sorte de mística corporificou‑se e cresceu lentamente entre os oficiais: estavam predestinados a serem os salvadores do Brasil das ignomínias partidárias. E o indigno invectivar recíproco entre liberais e conservadores não poupava nem a si próprios, nem o Imperador nem o regime imperial.

183. Os partidos e as fôrças armadas. — Foram aparecendo os primeiros sinais de alheamento, pródromos de divórcio entre a monarquia e as fôrças armadas. Enquanto isso, politiqueiros, inspirados no que lhes parecia ser a lição de 1868, procuravam achar aliados por entre os oficiais. Era a repetição da velha, velha lição de todos os tempos, rivalidades partidárias a procurarem apoio e proteção na fôrça bruta. E assim os grupos monárquicos se entregaram ao amparo dêstes guarda-costas militares.

Por sua atividade especializada, por disciplina, por hábito de associação e de obediência, por solidariedade de alvos, são o Exército e seus oficiais uma classe naturalmente gregária, fácil de se mover ao aceno de chefes poucos, possuindo prestígio e confiança entre seus subordinados. Prêsa fácil para comandantes audazes e empreendedores, sem ponderosa bagagem de escrúpulos. Ademais, já numerosos pensadores têm notado que um exército é rara e notável sobrevivência, no meio moderno, de uma  p307 casta modelada por ideais corporificativos e moral baseada na honra, no sacrifício e no mais nobre desprendimento.

Quando tais motores éticos essenciais são postos em ação, tôda a máquina se sente abalada pelas razões invocadas. Politiqueiros de espírito sutil souberam sempre o segrêdo de aplicar a velha máxima mens agitat molem, e, por detrás da cortina, mover como quisessem tais fatôres beligerantes do poder material. Uma que outra das revoltas narradas pela História ainda comprova o asserto; após certo tempo, os próprios oficiais que haviam resistido às sereias politiqueiras destiladoras do veneno dos pronunciamentos, caíram‑lhes nas garras e foram suas vítimas. Pretorianos, varangianos, janízaros, e tantos mais são provas históricas de tais rumos.

No Brasil, os liberais haviam feito do valente e audaz Osório, mais tarde Marquês do Erval, seu conselheiro militar. As circunstâncias, mais do que o espírito de partido, tinham pôsto em evidência singular o prudente, famoso e vitorioso Caxias, apontando‑o como exemplo e chefe para o país inteiro, mas com especialidade para os conservadores. Quando ambos morreram, em 1877 e 1880, respectivamente, recaiu a sucessão sôbre individualidades de porte menor, pessoas de vasta nomeada e da valor técnico nos combates, mas sem o mesmo renome nos conselhos; o divórcio das mentalidades entre os dois campos, o civil e o militar, avultou e tanto mais, quanto as causas de preeminência e de prestígio nas batalhas pouco tinham que ver com desígnios políticos e com a possibilidade de desempenho de qualquer grand rôle político.

Os liberais adotaram Correia da Câmara, Visconde de Pelotas, para seu paraninfo; e, entretanto, não era êle mais do que um bom general de cavalaria, chefe de ardor e de denôdo, de pequeno valor parlamentar, se é que o tinha, duro mais do que prestigioso, senador pelo Rio Grande do Sul.

O mesmo tencionavam os conservadores fazer com o general Manuel Deodoro da Fonseca, dêle constituindo o herdeiro de Caxias. Sua fé de ofício era brilhantíssima. Leal como o aço, destemido até a temeridade; coração magnánimo, mas espírito apoucado; pronto a explodir como dinamite, mas cheio de boas intenções, arrependendo‑se imediatamente depois e ansioso por  p308 desculpar‑se se tivesse longe demais. Soldado na alma, sempre solidário com seus camaradas. Não haviam ainda permitido os fatos nem as ocasiões, contudo, realizar‑se sua eleição para o Senado, para o qual seria certamente escolhido.

Em um ponto, Deodoro e Pelotas estavam ìntimamente de acôrdo: a solidariedade com o Exército em tudo, fôssem quais fôssem as divergências de opiniões partidárias.

Por 1883‑1884, começou a se fazer sentir certa fricção entre as classes armadas e os ministros da Guerra civis. O abolicionismo ia se tornando uma cruzada na qual o sentimento preponderante dos oficiais era contrário à escravidão, enquanto o gabinete presidido pelo Barão de Cotegipe, fundamente conservador, recusava ir além da lei de 1871, e, quando muito aceitaria com relutância a lei Saraiva de 1885, forçado pelas circunstâncias e como medida de transação com o chefe liberal, ao qual o prócer conservador tinha sucedido.

Por divergências dessa ordem, mais de uma vez haviam sido censurados oficiais e cadetes das escolas militares, punidos, mesmo, por terem sido achados em reuniões públicas nas quais tal assunto era debatido. Aos poucos, a discussão se azedava. Pela propaganda tenaz que lavrava nos institutos de ensino, militares também, acêrca dos princípios liberais e das pesquisas filosóficas que condenavam a hereditariedade como base de govêrno, um esprit frondeur reinava entre estudantes, e, no Exército, constituía a feição geral da mentalidade nas graduações inferiores. Elevava‑se por essa forma o nível dos debates.

184. As questões militares. — O estado dos espíritos já era tal, que, em uma ocasião, em 1885, o ministro da Guerra teve de punir um oficial, o tenente-coronel Cunha Matos, que, em uma fôlha diária, discutindo com um deputado que o havia ofendido, proferira o conceito de que a causa de tôda a discussão fôra um êrro praticado pelo ministro. Tal censura foi bastante para ser tida por uma injúria irrogada a tôda a classe militar; Pelotas, no Senado, tomou a defesa de seus irmãoº de armas, com a lei ou sem ela, dizia êle.

Pouco antes, questão semelhante fôra suscitada pelo major Sena Madureira, com o mesmo resultado de ser punido êsse  p309 oficial. O ponto de partida fôra o abolicionismo. Mas nesse fato inicial, o oficial punido não se conformou com a censura; possuindo prestígio na classe, serviu‑se dêle e, de seu caso pessoal, deu origem a um movimento coletivo do Exército.

Tanto já progredira a indisciplina, que Deodoro, comandante das armas na Província do Rio Grande do Sul, na guarnição da qual o incidente ocorrera, formou ao lado dessa agitação, em 1886, e prestigiou seu subordinado. Mais uma vez Pelotas no Senado chefiou o ataque contra o gabinete.

Começaram no Rio Grande meetings de oficiais, aprovados por Deodoro por forma ostensiva. Tentou o govêrno abrir os olhos ao general sôbre as conseqüências de tais atos de indisciplina: foi mal sucedido. Não era tolerável semelhante situação, e o general teve de ser demitido de seu comando, received ordem para se recolher à capital do Império. Aqui, os meetings continuaram, com crescente intensidade e significação, no ano de 1887, sempre chefiados por Deodoro, a quem Madureira insubordinado e faccioso servia de secretário.

De guarnição a guarnição, de corpo a corpo, inaugurou‑se uma correspondência tendente a se nomear a Deodoro como representante geral da classe, com os devidos podêres para lhe defender os interêsses e os sentimentos de honra.

Já por si mesma, tal situação era revolucionária. Dela procuraram tirar partido os republicanos, com o fito de extremar posições entre a tropa e o govêrno. Os liberais, igualmente, haviam seguido a mesma política de hostilidade ao ministro conservador, como prova de oposição partidária; seus chefes, no Senado, perceberam afinal que de tais fatos poderia surgir sua própria ascensão ao poder através de um pronunciamento militar, e quiseram evitar tão incômoda situação; apertaram os freios, a fim de evitar‑se uma entrada no govêrno tão espúria, e procuraram lançar uma ponte sôbre a fissura que já se abrira entre o Exército e as instituições.

Nenhuma dúvida pode existir quanto a ter sido essa chamada questão militar um pródromo e um aviso da ruína do govêrno imperial. O próprio Cotegipe, presidente do Conselho, confessaria mais tarde que o gabinete tinha saído diminuído da contenda, e arranhado em seu prestígio.

 p310  A verdade era que tudo suportava, tôdas as amarguras de situações dúbias e de investidas vindas dos quartéis para evitar incidentes ainda mais graves.

Deu‑se a intervenção pacificadora liberal a 20 de maio de 1887; dela se originou uma trégua, mais trégua enganadora, pois atritos insignificantes de todos os dias evidenciavam a excitabilidade dos ânimos nas classes armadas, e quanto elas se achavam suscetibilizadas, e a desconfiança que nelas lavrava acêrca da resolução tomada pelo Executivo. Inda assim, 1888 passou sem grandes perturbações militares dignas de menção, a não ser uma ocorrência desagradável com um oficial de marinha reformado, na qual a polícia do Rio agira com imperdoável leviandade, que deu pretexto para a demissão do gabinete Cotegipe. Mesmo assim, era um sinal dos tempos.

185. A desafeição pelo regime imperial. — O resultado geral, entretanto, era uma crescente desafeição pelo regime; o Imperador ainda gozava de fundo respeito e da afeição agradecida dos velhos oficiais que haviam feito a guerra do Paraguai; mas os postos inferiores estavam preenchidos com jovens alunos das escolas militares que não experimentavam sentimento semelhante, e estavam ìntimamente convencidos das calúnias postas a circular pelos próprios partidos monárquicos, únicos obreiros reais, se bem que inconscientes, da queda do Império.

Agravava as circunstâncias o fato de que, desde 1887, fôra D. Pedro atacado pela invasão da moléstia que o levaria ao túmulo quatro anos mais tarde, o diabetes. Repercutiu imediatamente sôbre sua capacidade de trabalho e sua atividade mental. Não mais era o chefe acatado, infatigável nos seus labores, a par das menores minúcias da administração, intervindo pessoalmente em tudo com sua autoridade de soberano para descarregar a eletricidade de ambientes tempestuosos. Sua saúde combalida simbolizava o próprio declínio das instituições.

Ninguém, salvo raríssimas personagens de curta visão política, acreditava na possibilidade de um terceiro reinado. Com a mesma quase unanimidade de opinião, estavam convencidos em geral de que nenhuma mudança se realizaria durante a vida do Imperante. Um sentimento de afeto e de amor protegia a  p311 D. Pedro II, em sua marcha para o túmulo, como havia amparado ao monarca infante, quase no berço, nos dias agitados de 1831.

O sentimento monárquico de fidelidade às instituições, contudo, estava evanescendo.

O clero ainda estremecia aos golpes de perseguição aos bispos de 1873‑1875; os produtores, feridos pela abolição; todos haviam abandonado sua antiga dependência e sua fé no trono e se mantinham ou indiferentes à sua sorte, ou francamente manifestavam sua oposição ao regime. O Exército rompera seus liames de simpatia com êle, e esperava os acontecimentos, firmemente decidido a se não opor a nenhuma mudança democrática.

Uma propaganda persistente, oculta e sutil conseguira apresentar a Princesa-Imperial e seu espôso sob o aspecto falso de uma luz mentirosa; exagerando as feições mentais e morais da nobre Senhora, diziam‑na mero instrumento da vontade do clero; caluniando o Conde d'Eu apontavam‑no como sórdido avarento, afastado de quanto interessava o Brasil. E a verdade era que a Princesa ostentava um dos mais nobres exemplares de dignidade humana, de espírito de caridade e de ânimo cristão; perfeitamente cônscia de seus deveres, e firmemente decidida a cumpri‑los. E o Príncipe era um soldado de corpo e alma, capaz, altruísta, afeiçoado a seus camaradas, sempre pronto a servir a todos, gastando tudo quanto possuía para auxiliar e suavizar os sofrimentos que lhe ficavam em derredor; surdo, entretanto, e com fortíssimo sotaque ao falar brasileiro, embora conhecesse a língua como poucos, tais falhas lhe impediam tomar parte na conversa geral e o mantinham isolado. Dessa forma, distante do convívio comum, permaneceu até o fim o francés.

186. O desinterêsse da Família Imperial. Afonso Celso. — Do Imperador aos seus netos, nunca a Família Imperial cogitou pugnar pela coroa contra a vontade popular. Essas eram as expressões de D. Pedro II, e êle provou sua sinceridade tanto no poder, como, mais tarde, no exílio. Declarou‑o o conde d'Eu mais de uma vez, quando, em 1888, viajou pelo Norte do Brasil. Representantes de uma doutrina política, estavam persuadidos  p312 da superioridade da fórmula que defendiam: era dever seu, portanto, mantê‑la e aconselhá‑la para a felicidade da Nação, mas estavam perfeitamente opostos a impô‑la ao País. Tal foi sua conduta constante, tanto na vigência como após a queda da monarquia.

Naturalmente, teriam os acontecimentos corrido sem entraves: o Império teria tido a República por sucessora, ao fechar o Imperador seus olhos a sua vida mortal, e tôda a Nação teria aplaudido a transição.

Fôra, entretanto, olvidar que os fatos e as circunstâncias têm outra fôrça, que não possuem os desígnios humanos.

O gabinete João Alfredo deixava o poder nos primeiros dias de junho de 1889. O traço predominante da tarefa de seu sucessor na presidência do Conselho, fôsse êle qual fôsse, seria êsse choque com a desafeição geral em tôdas as rodas, na produção, nas classes armadas, nos partidos, no clero. Muito mais do que energia e competência, tato era a exigência capital do momento. Saraiva teria sido realmente o homem para lidar em um ambiente de tal delicadeza e dificuldade, situação perigosa entre tôdas. Chamado pelo Imperador para organizar o nôvo govêrno, declinou do encargo honroso, alegando seu precário estado de saúde, e aconselhou fôsse a missão confiada ao senador por Minas Gerais Afonso Celso de Assis Figueiredo, Visconde de Ouro Prêto.

Era êsse estadista um modêlo de honra, competência e capacidade de trabalho. Franco, viril e sincero, nunca fugia de situações claras, e desprezava métodos ou processos coleantes: não parlamentava com seus adversários, mas carregava contra êles, com todo esfôrço combativo. Nenhum fingimento, nenhuma simulação, nenhum golpe secreto, em sua tática partidária. Tudo em plena luz meridiana, sem sombras suspeitas nem compromissos. Um caráter de rigidez adamantina, inflexível e destemida. Um homem.

Seriam os tempos e as circunstâncias os mais próprios para se utilizarem tais virtudes, e de quilate tão alto? Não produziria a diplomacia resultados mais eficazes, no ambiente assim caracterizado, e não se revelaria superior a mera energia? É questão a investigar, e na qual tôdas as opiniões podem alinhar  p313 argumentos. Uma coisa, entretanto, é ponto pacífico: no máximo, qualquer êxito contra a corrente republicana adiaria a solução da crise até a morto do Imperador, nao além.

Em sua nobre sinceridade, o presidente do Conselho nunca prestou grande consideração ao trabalho dissolvente, de sapa, da intriga; desprezava os boatos falsos, as suspeitas recíprocas, e outros recursos que tais. Fundado a 7 de junho de 1889 seu gabinete dedicou todos os esforços à reorganização financeira, a fim de atender às exigências de uma produção desorganizada. Tal era seu programa econômico. De natureza diversa, era o problema político: como anular a ameaça de uma fôrça armada politicante? Nunca mascarou sua intenção: diante de um Exército profissional faccioso, em larga proporção nas mãos dos oficiais pelo serviço militar a longo prazo, alinhar uma milícia nacional, igualmente armada e treinada, na base do serviço pessoal e generalizado. A idéia era sadia, e sempre foi a pedra de alicerce das fôrças nacionais contra as fôrças profissionais.

Era, contudo, uma ameaça contra a situação vigente dos regimentos; e contra a noção de oficiais a desempenharem o papel de cidadãos-soldados, amedrontando civis desarmados com o pêso das armas a êles entregues, enquanto reclamavam o direito de assim agirem como cidadãos.

187. Os republicanos. Benjamim Constant. — Os republicanos, com suas hostes aumentadas pelo afluxo de fazendeiros enfurecidos pela perda de seus escravos, fizeram seu máximo esfôrço, de intriga inteligente, para levar‑se a crise ao apogeu; redobraram seu trabalho de sapa e de dissídios, caluniosos por vêzes, acusando o govêrno de pretender exilar oficiais, a começar por Deodoro, para regiões inabitáveis do País. A parte mas sensível do Exército, e que mais violentamente reagia ao acicate de tais métodos, era constituída pelos jovens recentemente saídos das escolas militares, ou prestes a deixaram‑nas. Era seu ídolo um professor já de meia-idade, o tenente-coronel Benjamim Constant Botelho de Magalhães. Havia tomado parte na campanha do Paraguai; era bom matemático e tido como profundo pensador. Desde muitos anos, fôra republicano, e, como tal e apesar de seu credo político, o Imperador o convidara para professor de seus netos. Entre ambos, existiam recíproca afeição e  p314 estima, baseadas na sinceridade de suas opiniões. Para os estudantes militares, sua palavra era oracular. Com êles conversando e conferenciando, seu prestígio ia sempre crescendo, até que, duma feita, os cadetes lhe pediram de conduzir o Exército e guiar o País fora dessa tremenda situação. Numerosos oficiais aderiram a êsse movimento ilegal.

O obstáculo máximo era a afeição agradecida de Deodoro ao velho Imperador. Persuadido afinal por Benjamim e alguns íntimos, velhos camaradas de fileira em sua maioria, deixou‑se arrastar, embora até o último momento não estivesse feita e firme sua resolução de derrubar a monarquia, preferindo êle a substituição do ministério. Foi necessário que Benjamim lhe mostrasse, após a vitória do motim, que, se a mudança se não realizasse, suas vidas se achariam tôdas em perigo; então, e só então, resolveu‑se a lançar sua sorte com a dos republicanos.

188. Proclamação da República. Deodoro da Fonseca. — Tudo se preparou em segrêdo, puramente em círculos militares, assistidos por poucos civis, êstes exclusivamente nas rodas republicanas. A data do levante seria a 20 de novembro; mas a 13 e 14, receando‑se dificuldades supervenientes e hesitações, foi propalado um boato pelos revolucionários de que o govêrno ordenara a prisão de Deodoro. Acendeu‑se o rastilho da mina. Anteciparam‑se ordens. Começaram a mover‑se as tropas na madrugada de 15 do mesmo mês. O gabinete, que só então suspeitara de que algum movimento ia sendo tramado, reuniu‑se no Quartel General do Exército às primeiras horas dêsse dia. Ali mesmo, foi feito prisioneiro. O Barão de Ladário, ministro da Marinha, chegando tarde à reunião, ao apear‑se de sua carruagem e vendo a reunião das fôrças diante do edifício onde o ministério estava sitiado, atirou contra o oficial que o intimara a se considerar prêso, e, em represália, foi alvejado e ferido.

Após a deposição de Ouro Prêto e de seus colegas, durante horas nenhuma providência se tomou para proclamar a República. Ao antigo presidente do Conselho apeado do poder, o próprio Deodoro declarou que iria procurar o Imperador para lhe propor a lista dos novos ministros. D. Pedro teve tempo de descer de Petrópolis, à primeira notícia dos acontecimentos,  p315 convocar e presidir o Conselho de Estado, e de incumbir Saraiva de organizar o nôvo govêrno. Quando êsse estadista tentou pôr‑se em contato com o chefe da revolução, para com êste conferenciar sôbre o objeto de sua missão, recebeu a resposta de que tal troca de vistas ficara sem motivo, pois a República já fôra proclamada e organizado o nôvo ministério.

Haviam sido vencidas as preferências pessoais de Deodoro pelos argumentos de seus associados republicanos, e o velho militar se tinha agregado a êles. Uma das razões principais, talvez mesmo a decisiva, para se conformar a tal solução, foi o rumor de que o Imperador havia confiado a presidência do Conselho ao senador Silveira Martins, inimigo acirrado e pessoal de Deodoro. O aviso dêsse convite, dado por Benjamim ao general, decidiu sua adesão à mudança de regime.

Em tôdas essas circunstâncias, de modo nenhum e em nenhum momento havia intervindo o elemento popular. Fôra simples motim, vitória em tôda linha por surprêsa. Mas, por amor à verdade, deve ser dito que foi mera antecipação, pois um terceiro reinado era tido por impossível, mesmo pela maioria esmagadora dos próprios partidos imperialistas.

Era evidente que a Família Imperial não poderia permanecer no Brasil. Até o último momento, entretanto, tôda sorte de provas de respeito e de deferência lhe foi prodigalizada. Todos sentiam, no País inteiro, que sòmente por dura necessidade se tornava forçado o exílio.

A 17 de novembro de 1889 se realizou o embarque, de madrugada. Fôra escolhida essa hora matinal, porque o govêrno receava movimentos e tumultos se se fizesse de dia, e se pudesse lamentar derramamentos de sangue.

A bordo do "Alagoas", partiram o Imperador e a Família Imperial.

Começara o período final do grande brasileiro, no qual se revelou maior ainda do que durante seu reinado.

Nunca, tão completamente como então, provou êle merecer o louvor de Vítor Hugo, saudando‑o como neto de Marco Aurélio.


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Página atualizada: 4 Out 13