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Capítulo 15

Esta página reproduz um capítulo de
Formação Histórica do Brasil
de
João Pandiá Calógeras

Companhia Editora Nacional
São Paulo, 1966

O texto é de domínio público,
exceto para meus anotações.

Esta página foi cuidadosamente revisada
e la creio livre de erros.
Se você encontra um erro, porém,
por favor me avise!

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 p364  Capítulo XVI

Revivescência de motins político-militares. Triunfo dos governos civis. Últimas presidências

Desde o seu início foi uma decepção a presidência do Marechal Hermes. Coisa curiosa, o malôgro decorreu das qualidades do digno militar, muito mais adaptadas a uma existência de caráter privado, do que à vida pública.

Um de seus aspectos característicos era o desejo intenso de agradar e servir a todos, combinado à sua incapacidade de recusar a quem quer que fôsse ou de resistir a solicitações, principalmente acompanhadas de lágrimas ou de cenas emocionantes. Os amigos, ou os que se pretendiam tais, sabiam dessa fraqueza e abusavam dela.

216. Deficiências de preparo político ao Marechal Hermes. — Ademais, sua vida se escoara em círculos militares; êsses influíam decisivamente em suas deliberações. Ignorava o ambiente político, e mesmo os rudimentos da administração pública. Nenhuma energia o inspirava; era um veleitário por crises, nem sempre no momento conveniente, nem quanto ao fato importante, ou à personagem mais competente.

Em geral, tal deficiência era ignorada. Sòmente entre suas relações pessoais e íntimas, era isso corrente. Como poderiam amigos verdadeiros denunciar tal falha? E quanto aos outros, meros sequazes interesseiros, buscavam tirar partido da situação, dela querendo derivar os possíveis proventos em benefício próprio, e por isso calavam.

 p365  Assim ocorreu que aquêles que mais sinceramente haviam combatido por sua candidatura, com a esperança de se formar um govêrno forte, capaz de criar e organizar a defesa nacional e de propugnar a marcha ascensional da administração pública, se sentiam confundidos pela inesperada descoberta de que o Marechal, entre pareceres contraditórios e interêsses em conflito, era balouçado para um lado e outro, mero instrumento nas mãos de seus interlocutores, e principalmente se êstes eram íntimos seus. Destes, muitos eram homens dams elevada espécie moral e intelectual; outros havia, porém, de nível muito mais apoucado. Em quase todos, a ambição desempenhava papel proeminente.

Sentia‑se êle, além disso, um prisioneiro de sua plataforma eleitoral, na qual tinha prometido muito mais do que seria possível cumprir.

Um de tais compromissos fôra o de que seu govêrno seria o mais civil dos governos; ora, os militares detestando os bacharéis (legisladores e fazedores de discursos) bem como seus métodos de administrar, receberam tal afirmação com mal disfarçado descontentamento; de vez por outra, tentava agir nesse rumo, e por outro lado, nada fêz para melhorar o Exército, quer como instituição, quer no tocante aos quadros; achava‑se o marechal em muito maus têrmos com seus camaradas.

Outro fôra que combateria as oligarquias locais, que haviam dirigido por largos períodos as situações estaduais, quer por si ou por subordinados irresponsáveis, meros títeres em mãos dos chefes reais. Era o combate ao caciquismo. Mas, como, em todos os Estados, as oposições locais acusavam aos respectivos governos, era uma semente de guerra civil que se espraiava pelo país inteiro.

Incapaz de resistir, em alguns casos, mesmo, forçado a reconhecer a procedência das queixas, prometia à direita, e à esquerda, a ambos os grupos contendores. Como era normal, tal eterno hesitar, tergiversar de opiniões e animação a ambos os adversários, era tido por êles como requinte de falsidade, política dúplice, e procedimento hipócrita. De fato, entretanto, era apenas mais uma prova de absoluta fraqueza. Mas prejudicou  p366 sua fama, acumulou falta de respeito sôbre sua reputação, insultando sua honra e sua sinceridade.

217. As repulsas. — Tais foram os fatôres principais que causaram as desgraças de seu período governamental; ausência de real energia; desconfiança na firmeza de suas decisões; tendência de obedecer ao último conselheiro ouvido, ou ao derradeiro perdido feito; ataque às oligarquias estaduais.

Começou com a organização de seu ministério. Continuou com a campanha de descrédito e as hostilidades reveladas contra seu predecessor e seus principais auxiliares.

Poucos dias após sua subida ao poder, uma insurreição ocorreu na esquadra, em conseqüência de maus tratos infligidos às tripulações. Durante dois dias, os amotinados, após assassinarem alguns de seus oficiais, tiveram a capital da República debaixo da ameaça dos canhões de 12 polegadas dos couraçados recém chegados da Inglaterra. Não possuía o Govêrno os meios de os reduzir a silêncio, e, tanto quanto, a razão invocada pelos revoltados era verdadeira e justa. Mas uns 20 dias depois, nôvo levante explodiu em navios outros e no Batalhão Naval. Foi dominado pela fôrça.

O mesmo espírito de rebelde e de maldade havia invadido o país inteiro, nem só como rancor profundo e arraigado resultante das amarguras da campanha política, como também pelo grito de guerra imprudentemente lançado contra os governos estabelecidos. Entre os ministros, dois eram defensores acesos das recriminações oposicionistas, pois ambos aspiravam subir na política geral do país, através de tais processos: o ministro da Guerra, que queria conquistar Pernambuco, e o da Viação e Obras Públicas, que alimentava o mesmo propósito, quanto à Bahia.

Bahia e São Paulo haviam sido as colunas mestras da reação civilista e da campanha eleitoral contra Hermes. Contra ambas, agiam o ódio e os ressentimentos do pessoal do Govêrno, e êsses sentimentos dominavam e inspiravam os intuitos oficiais. Pretextos, e por vêzes mesmo razões reais, invocados perante o presidente, pois é certo que tais Estados, sentindo‑se ameaçados, cometiram erros. São Paulo era pedaço grosso demais para poder  p367 ser engolido; armou‑se para receber a violência com violência reatora, e, embora o dissídio durasse por longo tempo, nunca chegou a um encontro armado.

A Bahia, contudo, estava em posição muito mais fraca, com grupos partidários quase equilibrados em fôrças; outros Estados ainda eram mais desprovidos de elementos para combaterem a tropa federal. Hermes vivia constantemente provocado pelos pedidos de intervenção de seus dois ministros, intensamente propensos a pôr em ação os recursos federais, porque assim serviam os seus próprios casos pessoais. Finalmente, foi vencido e não mais se opôs à derrubada violenta das situações estaduais. Pernambuco, Ceará, Alagoas e Bahia sofreram as conseqüências dessa intervenção revolucionária dos soldados da União, por ordem das autoridades legais, e em favor de um dos partidos locais em conflito. A Bahia chegou a ser bombardeada.

Tal rota política encontrou forte repulsa no país inteiro. O ministro da Marinha, o almirante Marquês de Leão, um homem de bem, inteiramente adverso a semelhante inversão das normas constitucionais, resignou seu cargo. Rio Branco, igualmente revoltado, apresentou seu pedido de demissão, mas já velho e doente, tal choque recebeu, que lhe não pôde resistir e faleceu.

No Estado do Rio de Janeiro dois candidatos haviam concorrido à presidência, e ambos se reputavam eleitos. Foi empossado o da preferência do Marechal. Na Capital da República, um habeas corpus, legal ou ilegal, pouco importa, concedido pelo Supremo Tribunal, protegia o Conselho Municipal: Hermes o desrespeitou.

Todos êsses fatos impressionavam fundamente o espírito público, formidàvelmente hostil à ação diretora do Govêrno Federal, ou antes de seu chefe. Mesmo nas classes armadas, uma corrente adversa estava em formação contra êle, pois nada se fazia em prol do Exército ou da Armada senão emaranhá‑los nos conflitos locais e expô‑los à animadversão geral do elemento civil. Além disso, e isso era alegado como uma atenuante e uma escusa, tanto os paisanos como os militares repetiam unìssonamente que Hermes não passava de um instrumento em mãos de Pinheiro Machado, o senador chefe do partido ao qual o Marechal cegamente seguía.

 p368  218. Pinheiro Machado. — De fato, Pinheiro era incontestàvelmente a influência dominante da política brasileira. Representava o Estado do Rio Grande do Sul, e gozava de alto prestígio desde a proclamação da República. Durante a presidência de Prudente de Morais, havia tomado posição na fração oposicionista, nela figurando, entretanto, como elemento de calma e de ponderação. Campos Sales fôra forte e inabalàvelmente sustentado por êle. Discordara da eleição de Rodrigues Alves, pois não confiava em um ex‑monarquista, dizia êle. Quando se cindiram os políticos, quanto ao candidato a escolher para suceder àquele, não aceitou Bernardino de Campos, embora fôsse um republicano, e deu sua colaboração a Afonso Pena, que fôra, entretanto, um adesista leal às novas instituições.

Chegou, mesmo, a aceitar a Davi Campista como sucessor de Pena, como êste desejava, esquecido do fato de que o velho conselheiro fôra escolhido pelo princípio de que o Presidente no poder não podia nem devia intervir na escolha de seu sucessor. Os acontecimentos não haviam permitido o êxito dessa candidatura; Pinheiro, conhecendo Hermes talvez melhor do que os sustentadores dêste, nenhum entusiasmo nutria por semelhante escolha, até que se convenceu de que era inevitável. Manobrou então, de sorte a adquirir certa influência no govêrno vindouro, a fim de procurar atenuar os erros que previa.

Muitos, entretanto, tinham de ser suportados, em conseqüência da falta de seguimento e de consistência nas idéias e nas resoluções do Presidente, e de sua constante capitulação ante os seus conselheiros íntimos, quer entre seus companheiros de classe quer entre seus afeiçoados mais do peito. E a responsabilidade dêsses graves dislates não podia ser evitada pelo chefe, mais aparente do que real, da política nacional, embora tantas vêzes se sentisse vencido.

Ia se formando uma atmosfera de convicção de que as únicas normas seguidas pelo Govêrno eram a violência, o desrespeito à lei e à justiça, o predomínio inconcusso dos interêsses de partido; daí um alheamento crescente e completo da opinião nacional para com a gente no poder, alheamento que chegava a se mostrar hostil, mal intencionado e cheio de desprêzo. Como resultado, êsse período presidencial, que todos haviam desejado  p369 e esperado fôsse modêlo de energia, progresso e organização, se revelava o mais fraco de quantos o Brasil havia tido.

Mais de uma vez, distúrbios locais, na Capital como nos Estados, forçaram o Presidente a recorrer à solução constitucional, mas extraordinária, do estado de sítio; êste, suspendendo o habeas corpus, não permitia dar remédio a qualquer ato de prepotência por parte do Govêrno.

Pioraram ainda as coisas, quando se evidenciou a má gestão de nossas finanças. Em vez de serem seguidas as normas prudentes, a par de progressistas, das presidências anteriores, que sempre levaram em conta as possibilidades do país, e nunca se afastavam de promover melhoramentos capazes de, por si mesmos, remunerarem as despesas incorridas para sua realização, o Marechal Hermes pouco cuidou de ouvir os conselhos de seu ministro da Fazenda. Tão difícil se tornou a situação que, em agôsto de 1914, se teve de lançar mão do expediente malsinado de emitir papel-moeda inconversível, e a 19 de outubro teve de ser contraído em Londres um segundo funding-loan.

Como era de se prever, todos êsses elementos se combinaram para tornar extremamente delicados os últimos 12 meses de período presidencial do Marechal Hermes. Para quem tenha acompanhado cuidadosamente os sucessos dessa fase de nossa história administrativa e política, não é exagêro dizer que o prestígio governamental havia caído tão baixo, que o país era dominado pela oposição, e que a ordem só se manteve pelo acôrdo geral e tácito entre partidos, Congresso, imprensa e tôdas as classes sociais para não permitirem que a situação se tornasse ainda mais grave do que já era.

Nos últimos seis meses, a explosão da grande guerra européia provocou a exacerbação das aperturas do Tesouro Nacional, pelo fato de haverem quase cessado as importações, fonte dos réditos alfandegários, principal elemento das receitas públicas. Nôvo crise ia sendo preparada por tal motivo, para agravar os obstáculos com que se teria de haver o próximo presidente.

Hermes tinha por Pinheiro Machado o maior respeito e ilimitada consideração, e desejava intensamente, tanto quanto lhe era possível, em suas hesitações veleitárias, tê‑lo por sucessor.  p370 Inconscientemente, era isto agravar sua própria impopularidade: entre civis, porque ambos eram tidos como responsáveis das violências constantes e das violações de leis, de que se queixavam as populações; nas classes armadas, e especialmente no Exército, porque os oficiais, pensando sôbre os fatos gerais de modo concordante com a opinião paisana, tinham a Pinheiro, embora injustamente, como o real causador da política de erros do Marechal.

Além do Presidente, a máquina partidária nos Estados menos importantes estava ao lado do senador rio‑grandense; nos mais importantes, sòmente Rio Grande do Sul o sustentava. Os de maior significação política, Minas Gerais, São Paulo, Pernambuco, Bahia, opunham‑se fortemente a tal escolha; não tanto, por causa dos modos dominadores do possível candidato, mas em conseqüência da tendência antiliberal da política por êle sustentada durante a presidência militar. Com êstes, em geral, consonavam os sentimentos pelo Brasil inteiro.

O que teria resultado de tudo isso, nas eleições, é difícil prever. De qualquer forma, entretanto, pode ser afirmado que teria ainda mais retalhado o país do que já estava, e isso em momento dos mais inconvenientes para semelhante luta e de tremenda delicadeza: financeiramente, arruinado o país e sob os influxos de uma moratória, com receitas diminuídas notàvelmente pela guerra havia suspendido pràticamente o comércio marítimo e, por conseguinte, os direitos cobrados nas alfândegas, e havia fechado a possibilidade de exportações regulares; polìticamente, porque o govêrno do Marechal havia fundamente ferido o sentimento nacional, e o amor inato do país pela liberdade.

Êsse era o sentido geral da opinião pública, e, contra êle, só o interêsse de partido podia ser argüido.

Ninguém, entretanto, expunha os fatos em sua simplicidade nua perante o país, e a campanha contra Pinheiro era conduzida segundo linhas de violência, de convícios e de ódios.

Um homem houve que solveu esta tão tensa situação: Sabino Barroso, o presidente da Câmara dos Deputados. Representava Minas Gerais, e era tido por observador psicológico de extremo argúcia das correntes gerais: admiradores seus costumavam  p371 dizer que era um verdadeiro sismógrafo político. Sua previsão era igual a seu tato e sua ação moderadora nos conflitos tão freqüentes de interêsses e de pareceres; sua superioridade moral, e sua completa abnegação, tanto quanto sua dedicação absoluta e exclusiva ao interêsse público, faziam dêle uma autoridade geralmente respeitada e obedecida.

Procurou a Pinheiro Machado, e abriu‑lhe os olhos à realidade. Poderia ser eleito o senador, mas à custa de grandes perigos: o país dilacerado por lutas partidárias, em face da mais ameaçadora das situações, tanto interna como internacional.

Revelou então o velho gaúcho a elevação de seu ser moral: ouviu Sabino em silêncio, meditou e respondeu que não se havia êle feito candidato, mas que amigos seus o impeliam a isso. Êle próprio havia refletido sôbre a inoportunidade de se apresentar como concorrente à presidência. Sentia‑se convencido agora pelo que lhe dissera Sabino, e ia declarar que não admitiria campanha em seu benefício.

Ao Brasil foi poupada nova luta da mais alta inconveniência, igual à que se dera com Hermes, graças ao nível nobre e patriótico em que tanto Sabino como Pinheiro colocaram sua ação combinada.

219. Eleição presidencial de Venceslau Brás. — Desenvolveram‑se então esforços para se escolher um estadista experimentado, capaz de resolver os problemas do momento. Rodrigues Alves e Campos Sales, ambos com grandes responsabilidades no regime, e administradores já provados, foram os nomes lembrados. O primeiro, no entanto, estava ainda convalescendo apenas de uma enfermidade que quase o levara ao túmulo; não estava em condições físicas para resistir por enquanto a novos encargos de govêrno, e sua escusa tinha de ser respeitada. A Campos Sales se opuseram poucos grupos partidos, mas que vinham principalmente de seu Estado Natal. De tal forma, a única personalidade conservadora, capaz de preencher a presidência, seria o vice-presidente em exercício, Venceslau Brás Pereira Gomes.

Pelo menos, era um gentleman, tolerante, bem intencionado, honesto e indiscutìvelmente limpo. Seu govêrno no Estado de  p372 Minas Gerais havia demonstrado seu valor moral: candidato com Hermes, na mesma chapa, fôra insultado, vilipendiado, em escala desconhecida até então; nunca retaliara, nem se vingara, e aos mais exaltados oposicionistas dera a mesma proteção e provas de respeito, que haviam sido concedidas a seus correligionários.

Durante o govêrno quase intolerável do Marechal, sua conduta fôra cheia de tato e de dignidade: nunca pudera ser suspeitado de conivência com procedimentos menos liberais; auxiliava a seu chefe, onde e quando podia; em tôrno dêle reinavam respeito e confiança, enquanto, êle próprio, se revelava suspicaz a se deixar influenciar por mera outiva.

Ao tomar conta do poder, declarou que considerava sua missão como sendo de paz e de restauração do crédito, tanto moral como financeiro, do país.

220. As dificuldades do momento.Defrontavam‑se‑lhe grandes dificuldades, realmente. Cada vez mais se complicavam os problemas oriundos da guerra. Embora partidário sincero da neutralidade absoluta, Venceslau Brás não podia permanecer indiferente quando as provas da intervenção oculta da Alemanha estavam se multiplicando, tais como violações da legislação brasileira, fazendo dos portos nacionais bases de reabastecimento dos cruzadores armados, fomentando paredes operárias, e tentando mobilizar as colônias povoadas com elementos germânicos. Quando as operações navais levaram os navios de guerra do império a afundar barcos desarmados e neutros do Brasil, com risco de vida de suas tripulações e de perdas dos haveres embarcados, sentiu o Presidente que o limite da paciência estava atingido; o Congresso, então, proclamou, a 26 de outubro de 1917, que o país aceitava o estado de guerra impôsto pela Alemanha, em sua manhosa política e nos constantes ataques contra nossa marinha mercante. Longa série de leis e decretos haviam preparado o advento dêsse solução final e tinha progressivamente preparado os Impérios Centrais a tal decisão; começara por definir nossos princípios de neutralidade, continuara pela ruptura de nossas relações diplomáticas, até a cooperação na paz como na guerra.

Além de tais circunstâncias materiais, que haviam forçado o curso da política do Brasil, velhas regras de nossa orientação internacional  p373 aconselhavam‑nos a agir por essa forma: o Govêrno rememorou essas tradições, ao tomar as medidas preparatórias entre a neutralidade e a luta.

Fôramos obrigados a suspender relações políticas e comerciais com o Império germânico, a 11 de abril de 1917, como conseqüência do torpedeamento de um vapor brasileiro, poucos dias após a declaração de hostilidade dos Estados Unidos contra o Reich. Ao responder a uma nota da embaixada norte-americana, que comunicava o rompimento, explicava o Presidente Venceslau Brás o ponto de vista em que se colocava, para interromper relações com o Govêrno Imperial embora fôssemos ainda neutros:

"O Govêrno não podia ir além; mas a Nação Brasileira, pelo seu órgão legislativo, poderá, sem intuitos belicosos, mas com firmeza considerar que um dos beligerantes é parte integrante do Continente Americano e que a êsse beligerante estamos ligados por uma tradicional amizade, e pelo mesmo pensamento político na defesa dos interêsses vitais da América e dos princípios aceitos de Direito Internacional.

"Tem sido esta sempre a conduta do Brasil; a República mantém‑se fiel à tradição ininterrupta da sua política externa; hoje não poderia repudiar as idéias que inspiraram a nota protesto do Império do Brasil, em 15 de maio de 1866, quando uma esquadra européia bombardeou uma cidade sul‑americana.

"Acentuando por fim que a política de solidariedade continental não é a política dêste período de govêrno nem dêste regime, mas a política tradicional da Nação Brasileira, submete o assunto ao julgamento do Congresso Nacional, convencido de que se, porventura, alguma resolução fôr adotada, ela afirmaria a feliz inteligência que deve existir entre o Brasil e os Estados Unidos."

As medidas legislativas subseqüentes insistiram sôbre tal modo de orientar nosso pensamento internacional; a fim de evitar qualquer dúvida nesse ponto, o Govêrno, em nota enviada a todos os países, tornou preciso o que constituía nossa norma de ação. Um dos tópicos da nota dizia:

"Se até agora a relativa falta de reciprocidade por parte das Repúblicas Americanas tirava à doutrina de Monroe o seu verdadeiro caráter, permitindo uma interpretação menos fundada das prerrogativas de sua soberania,  p374 os acontecimentos atuais, colocando o Brasil, ainda agora, ao lado dos Estados Unidos, em momento crítico da história do mundo, continuam a dar à nossa política externa uma feição prática de solidariedade continental, política, aliás, que foi também a do antigo regime, tôda vez que tem estado em causa qualquer das demais Nações irmãs e amigos do continente americano."

Continuou a ação da marinha germânica contra nossos navios, e, a 26 de outubro de 1917, o Congresso, de pleno acôrdo com o Executivo, votou o reconhecimento do estado de guerra. Deu então início a plena colaboração do Brasil com os Aliados: votaram‑se, então, as medidas que decorriam da nova situação.

221. O cumprimento do acôrdo financeiro. — Quanto aos aspectos financeiros do govêrno de Venceslau Brás, podemos sumariar seus efeitos esclarecendo primeiramente a situação herdada de seu antecessor, o Marechal Hermes, e os resultados atingidos após três anos de duração do funding-scheme.

De fato, larga diferença existia entre o primeiro funding, de 1898, e o segundo.

A começar pelas somas a que se aplicava cada um dêles; cêrca de 33 milhões de dólares o primeiro, e cêrca do dôbro a operação de 1914‑17. As responsabilidades da operação do período presidencial precedente ascendiam a 20 milhões de dólares no estrangeiro e mais uns 80 no mercado nacional. Os direitos de alfândegas, que ocupam o lugar proeminente nos réditos federais, estavam desaparecendo em virtude da cessão quase completa das importações oriundas da guerra, e assim também as rendas da exportação pertencentes aos Estados, impedidos como se achavam os mares. Uma intolerável crise econômica assoberbava todos os departamentos do trabalho. Novas taxas, era quase impossível criá‑las ou cobrá‑las. Menos de três anos haviam sido concedidos pelos nossos credores, em 1914, para restabelecer‑se a normalidade dos pagamentos. Impossibilidade absoluta de levantar capitais na Europa, pois a guerra os absorvia todos.

Por ocasião do primeiro projeto consolidador, ao contrário, o mercado internacional de capitais regurgitava de ouro, e as taxas de juros eram baixas. O comércio no Brasil estava em  p375 fase de convalescença e tendia a readquirir a solidez sadia de eras passadas. Impostos e taxas não eram muito elevados, e, conseqüentemente, o campo tributário estava quase desimpedido.

A proporção entre as responsabilidades totais dos dois períodos era de 33 para 166, ou de 1 para 5; com essa agravante de que, na operação última, 100 milhões de dólares tinham de ser imediatamente pagos em moeda ou em seu equivalente.

Sòmente aquêles que tiveram de dirigir os negócios nessa época, e de enfrentar essas terríveis dificuldades, podem avaliar a tarefa tremenda que lhes havia sido imposta e que constituía verdadeira agonia de cada dia de trabalho.

Quando Venceslas Brás deixou o govêrno, podia afirmar, sem bazófia, que a questão financeira já pertencia ao passado.

As despesas públicas haviam sido fortemente comprimidas. Contratos e responsabilidades haviam sofrido uma diminuição de cêrca de 500 000 contos de réis, pelas revisões feitas; o que representava cêrca de 100 milhões de dólares ao câmbio da época. A normalidade dos pagamentos fôra restabelecida no exterior, em moeda corrente. A dívida flutuante fôra consolidada. Os títulos da Dívida Pública estavam em alta, tanto no mercado estrangeiro como no nacional.

A vida partidária readquirira sua primitiva tranqüilidade. Por seu esfôrço pessoal e seu prestígio, o Presidente lograra decidir um conflito muito delicado em os Estados de Paraná e Santa Catarina, sôbre sua linha divisória, e pacificar Mato Grosso, cujos grupos políticos haviam recorrido à revolução interna. O Código Civil, finalmente, chegara à fase final de sua elaboração. Levantes e distúrbios locais haviam sido abafados.

Em vez de experimentar, como tantos de seus predecessores, fazer de um amigo pessoal ou de um aderente seu sucessor, cooperou com as principais correntes partidárias do país para pôr a frente da República um homem realmente capaz e digno de tão grave responsabilidade.

222. Rodrigues Alves, presidente pela segunda vez, morre antes de empossado. Delfim Moreira, na presidência. — Pela segunda vez, Rodrigues Alves foi escolhido, e devera subir ao poder a 15 de novembro de 1918. Já velho e gravemente ferido  p376 em sua saúde, por uma vida de incessante dedicação ao serviço público, não pôde resistir a uma nova crise que o acometeu. A 16 de janeiro de 1919, falecia, sem haver tomado posse de seu cargo.

Durante meses, de novembro de 1918 a 28 de julho de 1919, o Vice-Presidente Delfim Moreira da Costa Ribeiro permaneceu à frente do poder. Era para êle verdadeiro sacrifício, e estava ansioso por sair da presidência: seu estado de saúde era precaríssimo e sentia‑se esgotado pelos trabalhos dos quatro anos difíceis da presidência que acabara de exercer em Minas. Além disso, não possuía para agir a mesma liberdade de movimento que correspondesse a sua responsabilidade, se tivesse sido o presidente eleito. Sua posição era algo esquerda, pois se considerava hóspede em palácio, onde só poderia dar plena medida de seu valor se fôsse o definitivo inquilino dêle. Inda assim, seu bom senso sólido, suas qualidades morais intrínsecas e sua experiência de govêrno lhe permitiram fazer um govêrno muito regular.

223. Eleição presidencial de Epitácio Pessoa. — O nôvo presidente eleito, Epitácio Pessoa, representava uma escolha feliz e surpreendente, embora já tivesse êle dado prova ampla do seu valor excepcional, como ministro e como membro do Supremo Tribunal Federal. No momento, era senador pela Paraíba e se achava ausente do país, como chefe da Delegação brasileira à Conferência de Paz de Versalhes. A surprêsa consistia nisso: representava um Estado pequeno da Federação, e, como regra, os presidentes vinham de São Paulo e de Minas Gerais, dois dos Estados principais do Brasil.

Era tal norma o resultado do velho êrro político, datando da Independência. O Império recém-fundado não quis, ou não pôde, alterar a velha divisão administrativa do país, e como as velhas capitanias diferiam vastamente em área, população e recursos, sua influência na política interna correspondia a tais elementos. Daí derivava uma classificação de importância moral e polìticamente injusta, e pràticamente muito grave, já que a fôrça eleitoral de cada uma se tornava conseqüência dessas diferenças. Os Estados, destarte, viam‑se considerados como de primeira ou de segunda classe. Nem o Império, nem a República, tinham  p377 tido a visão ou a coragem de alterar semelhante vício de organização interna do Brasil.

Levava êsse sistema à escolha instintiva de candidaturas dos presidentes de Estados, possuidores do manejo das máquinas eleitorais mais poderosas, e nisso São Paulo contendia com Minas Gerais, nessa corrida de obstáculos ao pôsto de vencedor da presidência. Quando o triunfador era um verdadeiro estadista como fôra Rodrigues Alves, nenhum inconveniente surgiu no emprêgo dêsse errôneo processo. Mas era freqüente que tais personalidades pertencessem a um nível menos alto, e sòmente fôssem, quando muito, competentes nos assuntos relativos a problemas regionais, sem nunca terem tido contato mais seguido e mais íntimo, talvez mesmo sem estarem plenamente a par dos problemas, dos alvos e dos recursos da União. Como critério de escolha, substituía‑se à competência o simples número de partidários e de votos. O país, em seu conjunto, sofria as conseqüências de tal absurdo método de solução.

Era a prova evidente da falta de preparo e da incompetência, polìticamente falando, dos chefes de partido. Ficava claro, e infelizmente ainda perdura a situação, que não fôra atingida até agora a maioridade política quer mental, quer moral, pelos orientadores da opinião: o êxito eleitoral, por quaisquer meios, muito mais do que a adequação da solução, agia nas mentalidades. E, principalmente, não subiam além de meras contendas individuais.

Quando faleceu Rodrigues Alves, os primeiros nomes a serem lembrados para lhe suceder obedeceram à tradição costumeira. Foram postas à frente as candidaturas dos presidentes de São Paulo e de Minas Gerais, mas êste declinou da honra de ser competidor para tal cargo.

Ficou sòzinho em campo o Presidente de São Paulo, Altino Arantes. Forte corrente de opinião, entretanto, sugeriu a eleição de Rui Barbosa, e dessa lembrança nasceu grande agitação que fazia recear fôssem tumultuosas as operações do pleito. Apesar das afinidades da campanha civilista, a maioria do govêrno e dos chefes do partido paulista tinham manifesta preferência por Altino Arantes. Minas não desejava que Rui fôsse candidato, e aspirava por uma conciliação que evitasse tumultos e, talvez,  p378 motins militares. De fato, Rui era sustentado por frações muito respeitáveis de opinião; nas classes armadas, porém, reinava contra êle funda hostilidade, como remanescente dos distúrbios ocorridos no govêrno do Marechal Hermes. Os oficiais, em geral, consideravam‑se como tendo sido ofendidos coletivamente por êle, na contestação eleitoral de 1910. Injusto embora tal sentimento, existia de fato, e disso eram sabedores os círculos políticos.

Solução conciliatória, Sabino Barroso, então em Belo Horizonte, sugerira o nome de Epitácio Pessoa ao representante de São Paulo, Álvaro de Carvalho. No Rio celebravam‑se routines quase diárias entre os próceres da situação, e cada vez mais aparecia evidente a dificuldade do momento: previam‑se eleições penosas, com duas chapas hostis a se digladiarem. De tal solução eram todos unânimes a sentir que seria um mal para o país. Tratou‑se por isso de procurar uma fórmula transacional, entre partidários de Altino Arantes e de Rui Barbosa, aliado a Nilo Peçanha.

Daí resultou que êstes estadistas propuseram retirar a candidatura de Rui, se fôsse possível escolher um candidato de acôrdo, tirado de uma lista de quatro por êles próprios proposta. Infelizmente, tais candidatos eventuais eram tais, que não podiam ser aceitos pelo lado oposto.

Foi o momento em que Álvaro de Carvalho lembrou o nome da Epitácio Pessoa, declarando ser isto uma sugestão pessoal e nem sequer saber se São Paulo a aceitaria. Consultado por telefone, Altino Arantes nobremente respondeu que concordaria plenamente com a lembrança desde que ela conciliasse as divergências. E dêste modo foi aceita a inspiração, por lograr grupar as principais fôrças eleitorais do país.

Epitácio nada sabia do que se passava no Rio, acêrca da sucessão presidencial. Os telegramas que lhe comunicavam sua escolha, o colheram de surprêsa, em Paris, onde se achava na presidência da Delegação Brasileira à Conferência da Paz. Fôra aclamado candidato, sem o menor gesto próprio para tal fim.

Iniciou‑se, então, ao tomar conta do poder, um dos mais notáveis períodos presidenciais da nossa terra, inferior a nenhum dos mais salientes em nossa história.

 p379  224. Tarefa cumprida. — Desenvolveram‑se nossas relações exteriores, e intimidade maior surgiu com os povos dos dois hemisférios. Nossa presença na Liga das Nações, que contribuímos para fundar, deu‑nos oportunidade de colaborar na tarefa geral do instituto. As dificuldades oriundas da Grande Guerra foram solvidas, tanto com a França como com a Alemanha. Pela vez primeira, dois chefes de Governos europeus cruzaram o Atlântico para visitarem o Brasil: o rei dos belgas, em 1920; o presidente de Portugal, em 1922. Numerosos estadistas da América visitaram‑nos. Nossas fronteiras com os países convizinhos iam sendo locadas, nenhuma questão litigiosa existia sôbre êsse assunto.

As feições mais importantes dêsses tempos, postas de lado as terríveis lutas acêrca da sucessão presidencial de 1922, foram a celebração do Primeiro Centenário da Independência, a 7 de setembro de 1922, e a revogação da lei do banimento da Família Imperial, a 3 de setembro de 1920.

A primeira ocorrência deu ocasião a fornecer a prova material, na Exposição Internacional do Rio de Janeiro, do quanto o Brasil havia progredido. O surto geral e surpreendente da indústria, da agricultura, da criação, evidenciado nesse certame mundial, foi realmente de entusiasmo, revelou aos estrangeiros, tanto quanto aos próprios brasileiros, quase insuspeitada capacidade de produção.

A segunda tornava patente a completa e inteira pacificação dos espíritos, e a indisputada aceitação do nôvo regime.

Os restos mortais do Imperador D. Pedro II e da Imperatriz D. Teresa Cristina foram trazidos de Lisboa, onde tinham estado depositados por quase 30 anos na Igreja de São Vicente de Fora, o Panteão dos reis de Portugal da dinastia de Bragança. A bordo do São Paulo, poderoso dreadnought de nossa esquadra, o Conde d'Eu, espôso da princesa Imperial D. Isabel, a Redentora, filha de D. Pedro II e herdeira da Coroa, se a monarquia não houvera sido abolida, junto com D. Pedro, o príncipe do Grão-Pará, seu filho primogênito, acompanharam as cinzas augustas. O Conde d'Eu, marechal do Exército Brasileiro e seu chefe na última fase da campanha do Paraguai, foi recebido com as honras do seu  p380 cargo, pelos descendentes dos oficiais que havia comandado naquele conflito internacional.

Foi firmemente continuada a política de dar solução às discussões interestaduais sôbre os limites dessas circunscrições administrativas. Haviam sido 20, a princípio. Em 1922, estavam reduzidas a duas: Santa Catarina‑Rio Grande do Sul; Bahia-Pernambuco.

A mesma atividade reinava no departamento do Interior.

À Marinha se dispensavam cuidados especiais. O Presidente Epitácio havia resolvido nomear civis para as pastas militares; manteve essa norma, quando, em 1920, o primeiro ministro teve de se retirar, e em 1921 do mesmo modo, quando um terceiro civil tomou conta dêsse departamento administrativo. Uma vida nova foi infundida em todo o organismo: reconstruíram‑se unidades, para as modernizar; instalações completamente essenciais foram iniciadas e levadas adiante com ardor; navegação e prática de artilharia desenvolveram‑se com intensidade notável; reservas navais em homens e em material polarizaram esforços, nunca esmorecidos.

Desde alguns anos, o Exército havia experimentado grandes progressos, sob o influxo de um grupo de oficiais, principalmente nos postos iniciais da hierarquia, cheios de entusiasmo patriótico e noção exata do dúplice dever de elevar seu nível profissional e de evitar tôda mescla com manobras partidárias e políticas. O nôvo ministro, também um civil, havia cooperado nesse movimento libertador e estava em plena consonância com a mentalidade nova do corpo de oficiais. Em 1919, uma missão especial de instrução fôra contratada em França, sob o comando do General Gamelin, serviço notável e que marcava uma época na história militar do país, prestado ao Exército pelo Presidente então em exercício, Delfim Moreira, e por seu ministro da Guerra, o General Cardoso de Aguiar.

O nôvo govêrno tomou a peito continuar as mesmas linhas de reorganização, planejadas por seu antecessor. Foram felizes as conseqüências. Foi estabelecido um plano de reformas e de ampliações, e sua execução entrou a se realizar: em tempo oportuno, os regulamentos novos ficaram prontos; progrediu o preenchimento dos claros, pelo sorteio; reformou‑se a justiça militar;  p381 armamento, munição, material de campanha de tôda sorte; aviação militar; fábricas militares; instruções e exercícios; quartéis, acampamentos, campos de instrução; escolas de tiro e prática das armas; tudo foi objeto de atenção. A grande parada de 1922, ao se celebrar o centenário da Independência, pôde mostrar o desfile de cêrca de 30 000 homens, armados, equipados e com todos os serviços em ordem. Tudo isso se referia tão sòmente à 1a Divisão do Exército, o qual conta cinco unidades da mesma categoria.

Trabalhava muito enèrgicamente o departamento da Agricultura para manter o passo com essa tendência ascensional na eficiência econômica e profissional do país; conseguiu fazê‑lo. Obras públicas, vias férreas, telégrafos, seguíam a mesma rota progressiva. Em 1922, a extensão dos trilhos subia a 29 389 141 metros; os telégrafos mediam 47 055 667 metros, com um desenvolvimento total de 83 778 230 metros de condutores. Pela primeira vez, o serviço contra as sêcas era dotado com os recursos convenientes, e a terrível interrogação sôbre êsse flagelo periódico encontrava quem inquirisse sistemàticamente de sua essência, e soluções eram achadas, como o haviam sido no plano de 1909, abandonado em má hora, e felizmente retomado pelo govêrno do Presidente Epitácio.

Todo o país respirava atividade, progresso, entusiasmo e trabalho patriótico. Os problemas eram estudados, analisados e solvidos intrìnsecamente, sem referências a considerações partidárias. Era isto um golpe duro para os políticos profissionais e seus clientes.

225. Expansão artística. — Surgia uma floração natural de escritores e de pensadores, que amparavam e desenvolviam tais reforços por atingir níveis mais elevados da existência. Nunca a imprensa diária ostentou tantos elementos intelectuais de valor, tanta plenitude de expressão e de pensamento.

Na literatura de ficção, pesquisas históricas e críticas, desenvolvia‑se a produção. Muitos dos autores já citados em páginas passadas continuavam a trabalhar, e a êste período pertencem muitos de seus melhores livros. Nomes novos começaram a aparecer. A vida interior achou cérebros para expor as feições  p382 novos do velho espírito humano; Farias Brito, notadamente, em seus ensaios. Uma legião de poetas surgiu intensamente esforçados em pesquisar o problema eterno da vida, do sofrimento e da morte; coisa notável, nêles todos, ou pelos menos em sua maioria, existia e se revelava um fundo comum de sentido e fortemente assente espiritualismo.

Morto, e bem morto e enterrado estava o romantismo, mas ainda, aqui e acolá, aparecia algum representante retardatário do antigo credo literário, a se opor à preocupação geral de fundar na observação tôda a literatura de ficção. Estudos notáveis e romances vieram à luz, e acharam expressão nos livros de Euclides da Cunha, Afonso Arinos, Coelho Neto, Graça Aranha, Afrânio Peixoto, Gastão Cruls, Alberto Rangel. Via‑se o claro esfôrço de basear tôda descrição num terreno sólido de fatos reais: a vida colonial, a imigração, o povo do sertão, a vida no Amazonas ou no interior do país, os problemas relativos à nôvo raça que se estava formando da mistura dos velhos troncos étnicos no cadinho de fusão sul‑americano.

De mais em mais, o Brasil afirmava sua preocupação capital, a de todos os pensadores: um nacionalismo sadio e verdadeiro, oriundo de todos êsses trabalhos de erudição e de pesquisa.

Porfiaram os críticos em tornar mais precisa e cuidadosa sua obra. Artistas como Tristão de Ataíde, Agripino Grieco, Humberto de Campos, Medeiros e Albuquerque, puseram‑se ou continuaram na dianteira. A atividade de nossa Academia Brasileira de Letras aumentou em valia e em quantitade, em tôdas as províncias da produção intelectual e estética.

Começou a exercer sua poderosa influência uma reação religiosa contra uma paganização excessiva oriunda de um naturalismo enganador. Anseios morais, interrogações sôbre a alma, vida futura, destino, inspiraram numerosos escritores. Em graus diversos, contudo, indo de mera religiosidade até mais puro e profundo e sincero catolicismo, citemos: Jackson de Figueiredo, Tasso da Silveira, Perilo Gomes, Hamilton Nogueira, Leonel Franca, José Manuel de Madureira, êstes dois últimos pertencentes à grande Sociedade de Jesus. O pensamento social era representado por ensaístas como Vicente Licínio Cardoso, Oliveira Viana, e poucos mais. História e erudição estavam representadas  p383 por um grupo notável de analistas e de pesquisadores formado pelos membros do Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro e de associações congêneres, tanto do Rio como dos Estados.

Todos êsses progressos revelavam as feições econômicas do país e seus recursos espirituais.

226. Crise da sucessão presidencial. — Na vida pública, todavia, o acontecimento mais importante ocorreu em assunto moral e político, e culminou na manutenção severo da ordem e da disciplina nas classes armadas, nas quais uma minoria de oficiais facciosos promoveu motins, a pretexto de se manter pura e inatacada a doutrina proclamada, ao que êles diziam, pelo Exército e pela Armada em 1889, ao ser abolido o Império.

Já vimos quanto tal pretensão era absurda, quando os fatos reais mostravam que a guarnição do Rio só antecipara, quando muito, por alguns anos, o que o país estava farto de saber aconteceria ao falecer D. Pedro II. Tal idéia esdrúxula de monopolizar as novas instituições em benefício de grupos privilegiados, era simples ensaio para favorecer os pretensos fundadores ou sustentadores da República.

Desde 1889, tal mentalidade tinha variado bastante, ora crescendo a invocação aos direitos imaginários da tropa, ora diminuindo, conforme os acontecimentos. Até a primeira presidência civil, dominava os negócios públicos. A primeira repressão foi o golpe dado na indisciplina por Prudente de Morais, auxiliado pelos melhores elementos militares. Nos períodos de Campos Sales e Rodrigues Alves, a agitação diminuiu até a revolta da Escola Militar e de alguns oficiais isolados, no Campinho, em 1904. Novamente arrefeceu o prurido até a eleição de Hermes da Fonseca, em 1910. Nessa fase, ressurgiram as cenas de 1889‑94. Desapareceram enquanto Venceslau Brás foi govêrno. Nos dias em que, morto Rodrigues Alves, se debatia quem seria seu sucessor, tornaram a se agitar, mais diretamente embora, deixando, entretanto, perceber quanto lhes ferira os sentimentos a escolha de Rui para candidato.

Do mesmo modo, quando se divulgaram os nomes dos possíveis ministros de Epitácio Pessoa, para as pastas militares, grande  p384 emoção agitou os oficiais. O nôvo presidente havia declarado sua intenção de chamar civis para as preencher; reuniram‑se generais e almirantes, e, entre si, admitiam a possibilidade de desvanecerem tal intenção na mente do Chefe do Estado. Êste nunca permitiu que tal sugestão lhe fôsse feita, afirmando que manteria com firmeza absoluta a sua prerrogativa constitucional de escolher seus secretários, deixando a insubordinados a responsabilidade de se amotinarem se quisessem, acrescentando que qualquer violação legal seria imediatamente esmagada e punida.

Verificou‑se que eram infundados os rumôres que corriam. Nada ocorreu: civis foram escolhidos, e foram cordialmente recebidos pelo Exército e pela Marinha.

Uma insignificante minoria, composta de personalidades especialmente favorecidas pelo govêrno do Marechal Hermes, sentia‑se ansiosa por ver ressurgir os dias e os métodos dêsse período. Seu chefe, o antigo presidente, fundamente desgostoso pelo que sua própria dolorosa experiência lhe tinha ensinado sôbre presidências militares, abominava política e políticos, dos quais tanto havia sofrido.

Após haver preenchido seu período de govêrno, Rio Grande do Sul o havia eleito senador; êle, porém, declinara o pôsto, declarando que sua vida política estava definitivamente encerrada.

Durante seis anos, permanecera na Europa, cada vez mais firme nesses propósitos, cuja expressão vivia a repetir e confirmar.

Sua bem intencionada fraqueza de intuitos, entretanto, era geralmente conhecida; também se sabia que não lhe era possível resistir a solicitações de amigos. Do Rio, acenavam‑lhe com a necessidade de voltar ao Brasil, pois os interêsses militares e o Exército estavam sendo espezinhados e descurados. Deixou‑se convencer, e voltou, inseguro todavia do modo pelo qual seria recebido.

No mesmo dia de sua chegada, em novembro de 1920, caiu novamente prêsa de politiqueiros e de camaradas agitadores, de oficiais sediciosos e de intrigantes civis.

O Exército havia evolvido, e, principalmente sob o influxo dos oficiais mais jovens, estava decisivamente imbuído de idéia  p385 sadia de atingir níveis mais altos da profissão, detestava a politicalha e compreendia perfeitamente o que significava a exploração de mentalidade de classes exercida por militares e por civis, simultâneamente: a dissolução da defesa nacional. Intrigantes, pescadores de águas turvas e em tempos perturbados, não mais encontravam o eco simpático e a recepção acolhedora de dias passados; ao contrário, eram tidos por um perigo e uma ameaça à fôrça organizada do país, representantes isolados de idéias já eivadas de caducidade sôbre preeminências militares.

Inda assim, e sentindo que a massa dos quadros já não vibrava nem correspondia às ambições políticas que nêle haviam sido reacendidas por falsos amigos, Hermes tornou a recolher‑se à penumbra, da qual o tinham querido tirar para seus alvos pessoais e egoísticos conselheiros interessados e pseudo-amigos, visando apenas servirem‑se dêle como um pião no tabuleiro partidário que manejavam. Havia chegado em momento crítico.

Já haviam começado reuniões preliminares para se trocarem vistas sôbre a sucessão presidencial de Epitácio Pessoa. Minas Gerais aspirava a dar candidato, que seria o presidente em exercício, Artur da Silva Bernardes, e sabia que lhe estava garantido o apoio de São Paulo. Devidamente consultado, Epitácio declarou, em março de 1921, não lhe ser lícito tomar parte em tais deliberações, que êle considerava justamente reservadas à ação política dos chefes de partido, tão sòmente; o papel do Chefe do Govêrno, dizia êle, era manter‑se inteiramente neutro na contenda, se ela se desse.

Ninguém discordava da candidatura mineira. Passou‑se a tratar da vice-presidência. Mais uma vez, Epitácio, consultado a indicar um nome, se escusou, sempre pelo mesmo princípio de moral política. Aqui, começaram as dificuldades: tanto Pernambuco como Bahia desejavam ver escolhido o respectivo presidente local, José Bezerra e J. J. Seabra. Controvérsias e debates foram alteando o tom do dissídio, e o ambiente político foi ficando envenenado. Dominavam, já agora, as paixões incandescidas e ódios partidários.

Iniciou‑se então um jôgo bifronte. A turba muito mesclada de civis e de oficiais que girava em tôrno de Hermes sentiu que era por demais fraca e sem elementos para conquistar o eleitorado  p386 nas urnas, por meio de processos pacíficos embora enérgicos, quais os que caracterizam as lutas partidárias nos comícios. Sua única possibilidade de triunfo era acirrar ódios até o ponto do rompimento entre os grupos, e então entrar na justa com ameaças de intervir a fôrça armada para fazer vingar seu candidato. Com êsse intuito, escreveram e telegrafaram para os Estados, nos pontos onde podiam agir oficiais notòriamente insubordinados, com a senha de provocarem agitações e mesmo motins, por um lado; enquanto, por outro, mantinham contato, no Rio, com os chefes do movimento partidário. Mais íntimo ainda tal contato, quando Nilo, de volta de uma viagem à Europa, chegou ao Brasil no momento em que a crise atingia seu ponto culminante. Deve ser dito que o Presidente Epitácio havia feito tudo quanto estava a seu alcance para sugerir um acôrdo quanto a um terceiro candidato que satisfizesse aos dois campos: ambos se furtaram a isso.

Nilo fôra um dos sugestores, senão talvez o primeiro, da candidatura de Bernardes: da Europa, enganando‑se sôbre os acontecimentos, telegrafara a seus amigos que sustentava o Presidente de Minas "com ou sem Epitácio". Ao desembarcar no Rio, ainda havia manifestado o mesmo propósito.

Vendo quanto estava tensa a situação, entretanto, e que certos elementos militares o vinham cercar com promessas sem conta, embora para isso não tivessem êles autorização nem pudessem falar com sinceridade em nome do Exército, não resistiu o antigo vice-presidente e presidente em exercício após a morte de Afonso Pena, e julgou chegada sua oportunidade. Pôs‑se à frente do movimento, desertou seu próprio candidato e antigo amigo, e passou a combatê‑lo aceitando a candidatura para si mesmo.

Era inegável sua intimidade com os chefes da agitação militar. Pensava que nessa campanha eram aliados; em realidade, se um motim militar tivesse lugar e triunfasse, era evidente que o cabeça da insurreição seria o escolhido para o govêrno de fato da nação.

Foi conduzida a campanha com absoluta falta de escrúpulos e de senso moral. Alguns dos partidários de Nilo, provàvelmente sem que êste fôsse sabedor dos recursos utilizados, e sem que  p387 autorizasse as armas empregadas, lançaram mão de uma falsificação despudadora, uma falsa carta que se atribuía ao candidato mineiro, insultando baixamente ao Exército e à Armada, de modo a ferir ao vivo os justos melindres dessas classes, em seus sentimentos mais delicados de brio e de abnegação. Nilo silenciou, em vez de condenar e votar ao desprêzo tais meios de combater seu contendor; Hermes, que conhecia a origem dessa falsidade, manteve‑se em atitude dúbia.

Como era fácil de imaginar, a agitação cresceu e se tornou mais intensa e ameaçadora nos círculos militares, assim postos diretamente em fogo. Tal era precisamente o fim dos conspiradores: perturbar o pleito, e, na confusão, ou mesmo na desordem reinante, levar avante seus intentos — eleger Nilo, para a maioria dêles; elger ou proclamar a Hermes, para os membros da conspiração.

Cumpre dizer que nas classes armadas a emoção era muito viva, embora se hesitasse quanto à autoria da carta falsa, pois Bernardes, indignado, havia nobremente repelido a aleivosa insinuação de ter tido qualquer iniciativa que pudesse justificar tal infâmia. Conseguiram, contudo, os keepers persuadir ao senador Raul Soares, líder da candidatura do Presidente de Minas, de que um pronunciamento de tribunal de honra poria têrmo à questão. Em honra de Bernardes seja dito que êle se opôs a tal procedimento; ponderou, com inteira procedência e noção de responsabilidade, que não poderia admitir uma discussão e uma exibição de documentos e provas sôbre tal tema, isto é, sôbre se êle tinha, ou não, dito a verdade.

Infelizmente, Raul Soares não conhecia a fundo o meio federal, e julgava ser uma impossibilidade que assunto de honra pudesse ser objeto de fundas intrigas e de deslealdades. E, contra o parecer de conselheiros desinteressados e leais, persuadiu por seu turno ao presidente mineiro da conveniência de transigir e capitular nesse ponto. Êrro terrível, que abriu as comportas da torrente de calúnia e abusos.

Procurou, a princípio, o arbitramento de personalidades respeitáveis, que sé recusaram a entrar em tão emaranhado cipoal. Raul Soares foi então levado a aceitar o Clube Militar como autoridade arbitral. Ignorava o senador, ou então aceitara informações  p388 suspeitas que lhe esconderam a realidade dos fatos, que o Clube Militar, presidido por Hermes (que conhecia tôda a história da falsificação), era o quartel-general de todos os oposicionistas a Bernardes. Acalmaria o ambiente militar, lhe disseram seus conselheiros fardados ou não. Não sabia, porém, ou não queria acreditar, apesar dos avisos de gente mais conhecedora do meio, que tal associação se achava em mãos de politiqueiros, quer do Exército, quer civis, que se aparceiravam em benefício próprio, principalmente com Hermes, e, não sendo possível com êste, com Nilo.

Na sua honesta convicção, o senador persuadia‑se de igual honestidade alheia; acreditava em que o laudo seria unânime em favor da verdade, isto é, declarando que a carta era uma deslavada invenção de falsificador, e, entretanto, já estava lavrado o documento, unânime, contrário a Bernardes e atribuindo‑lhe a autoria da missiva fraudulenta e forjada! . . . O próprio Hermes, no qual êle confiava, dava o prestígio da sua autoridade à vergonhosa tramóia, de cuja flagrante injustiça êle era sabedor.

Como era natural, durante as operações preliminares dos peritos quirógrafos, os oficiais tinham ficado quietos e em silêncio, esperando as conclusões. Mas quando estas se divulgaram, com o fato agravante de ser unânime o laudo, a quase unanimidade dos quadros aceitou bona fide a palavra da Comissão como sendo Evangelho, e acreditou firmemente que Bernardes havia de fato e grosseiramente insultando as classes armadas.

Dentro em breve prazo, as circunstâncias se publicaram, mostrando e provando a impossibilidade evidente da acusação. Mais do que isto, o falsificador confessou seu crime, como, onde, quando e por ordem de quem o havia praticado. Aí, tudo mudou: por tôda parte, os calumniadores ficaram desmoralizados; de sua companhia, e da do seu partido se retiraram quantos possuíam sentimentos cavalheirescos, enojados da mera idéia de enfileirarem com gente cujo senso moral caíra tão baixo, que lhes consentisse usar de processos tão desonrosos.

Ainda assim, no Exército e na Armada, 80% dos oficiais estavam honestamente convencidos de que o Presidente de Minas era culpado, e baseavam sua convicção no fato do laudo; enquanto 10% defendiam com sinceridade e convicção oposta, e os  p389 10% restantes agiam por interêsse egoísta e de baixo estôfo, sabendo perfeitamente que havia sido uma manobra eleitoral imoral e indigna.

Quando a verdade real se divulgou geralmente, provocou golpe terrível no partido que sustentava a candidatura de Nilo Peçanha. O elemento militar faccioso previu que as urnas lhe seriam certamente contrárias. Começou, pois, a desenvolver propaganda mais intensa em rumo de provocar pronunciamentos armados e levantes locais. Tornados públicos os resultados do pleito, tanto os chefes batidos como os oficiais derrotados envidaram todos os esforços para o fim de suscitar revoltas nos Estados e derribar os respectivos governos.

De março a julho de 1922, inúmeros casos se poderiam nomear de tal atividade revolucionária, chegando mesmo a realizar seus intuitos. O ambiente político mostrava‑se tão desordenado, que todo senso de medida, de obediência legal, desapareceu. Os oposicionistas, até mesmo seus mais graduados chefes, falavam de pleito fraudulento, da incapacidade moral em que se achava o Congresso de apurar a verdade das eleições; não tinham seus membros assento nas duas Câmaras, e não haviam tomado parte na luta, por um ou por outro lado? Propunham, em conseqüência, retirar do Legislativo sua função privativa de apurar o voto para a presidência. Nem mais, nem menos, era a revolução. Como poderia o Brasil tolerar tal medida? O único caminho a observar e seguir era obedecer à Constituição que dá tal competência ao Congresso. Assim foi feito, e pôde então ser verificado que a maioria do país havia de fato dado ao Presidente de Minas ganho de causa.

Outra tentativa a fim ensaiada para convencer o Supremo Tribunal de que devia reconhecer como vice-presidente eleito o candidato oposicionista Seabra, sob o pretexto de que o candidato que figurava na mesma chapa com Bernardes havia falecido após o pleito, deixando vago o lugar para ser preenchido com o nome que vinha nas listas imediatamente após. Era um absurdo, mas constituiu nova campanha partidária, que terminou pela recusa do Supremo Tribunal de aceder a doutrina tão esdrúxula.

227. A conspiração. — Mesmo então, os cabeças da oposição ao presidente eleito declararam definitivamente que não aceitavam  p390 nem acatariam a situação legal das coisas. Equivalia tal declaração a proclamar a atitude revolucionária de seu partido: de fato, renovada e muito mais intensa, se iniciou uma situação insurrecional.

A Norte e a Sul, nas guarnições fervia o ambiente, onde quer se achassem oficiais insubordinados. Todo pretexto era achado ou era inventado para motivar atritos. Em um Estado do Norte, no Maranhão, durante algumas horas o governador local foi deposto por um grupo de soldados chefiados por oficiais do batalhão da capital. Em Pernambuco havia surgido um conflito muito agudo acêrca da escolha do nôvo presidente do Estado, apesar de todos os esforços desenvolvidos pelo Presidente Epitácio para evitar o dissídio e e pacificar ambos os grupos contendores. Apesar dessa atitude conciliatória e de neutralidade, a ação do Govêrno Federal estava sendo injustamente comentada e censurada a fim de a apresentar ao público como intervenção indevida e inconstitucional em negócios privativos do Estado, quando realmente nada disto se tinha passado. Em Mato Grosso, havia sido nomeado um nôvo chefe para a circunscrição militar; seguiu para seu pôsto, com a intenção oculta e sub-reptícia de conduzir a tropa federal contra as autoridades da União e o Congresso, visando anular a eleição de Bernardes e a proclamação do voto que o sagrava presidente eleito, e impedir sua posse. Tudo isso ficou provado no processo contra os implicados no movimento revolucionário.

Essas perturbações tôdas da ordem eram um sintoma da conspiração geral de recorrer à violência para empossar os candidatos da chamara Reação Republicana, ou, o que parecia e seria mais provável segundo a lógica revolucionária, para colocar no poder o chefe militar da insurreição triunfante. A associação híbrida formada pelo elemento civil, chefiado por Nilo Peçanha, e os elementos militares insubordinados, às ordens do Marechal Hermes, tinha de se cindir no momento da partida dos despojos: esta provaria, sem dúvida, uma journée de dupes. Batida a revolta, e esmagados ambos os grupos aliados, continuaram aparentemente unidos. Na realidade, iniciativas independentes e divergentes começaram a aparecer desde os últimos dias de junho de 1922, até que, o Marechal, no seu caráter de presidente  p391 do Clube Militar, enviou um telegrama ao comandante da Região de Pernambuco, lançado em têrmos da mais alta inconveniência e violando tôda noção de disciplina.

Logo que foi publicado, o Govêrno puniu o transgressor dos regulamentos militares, e como êste insistisse em seu desrespeito às regras vigentes, mandou prendê‑lo. Isto fêz explodir a revolta latente.

Rompeu o movimento a 5 de julho de 1922. Quarenta e oito horas depois estava a ordem restabelecida completamente. Ato contínuo, nos Estados onde forte agitação se tinha manifestando, esta cessou e os distúrbios desapareceram, dando mais uma prova de que todo o mal‑estar reinante decorria da conspiração que tinha por centro o grupo de conjurados do Rio de Janeiro.

Uma grande lição deduzia‑se daí, dêsses tumultuários acontecimentos. Não era mais o Exército, como dantes, o material para levantes políticos, de cuja honra e patriotismo tanto haviam abusado os politiqueiros profissionais. Fôssem quais fôssem seus sentimentos pessoais, os oficiais, em sua grande maioria, sabiam e agiam sob o influxo da observância do princípio basilar de tôda fôrça disciplinada: o progresso profissional, a obediência à lei. Grande exemplo, e justificação dos esforços postos em prática pelo próprio instituto, para alcançar níveis superiores de ideal e de valia técnica! . . .

228. Artur Bernardes, presidente. — Nenhum empecilho, portanto, surgiu para a posse do nôvo presidente, Artur Bernardes, a 15 de novembro de 1922.

Uma apreciação honestamente justa do govêrno dêste presidente é coisa das mais difíceis, pois nenhum período administrativo registra o Brasil tão dilacerado por paixões como êste, e no qual tanto hajam contendido sentimentos opostos. Foram quatro anos de quase contínua guerra civil, e que decorreram, como exceções escassas e curtíssimas, na vigência do estado de sítio. A impressão pública, contudo, não foi favorável nem indulgente. Cumpre, entretanto, que o tempo se escoe, antes de enunciar juízos definitivos, e sobretudo imparciais, sôbre os acontecimentos da época.

Manda a justiça se diga, à puridade, que Bernardes, a bem dizer, não pôde governar: sua magistratura foi uma luta contínua;  p392 a essa tarefa teve de dedicar todos os seus esforços, quer as calamidades tivessem por origem atos presidenciais, quer derivassem de iniciativas de fatôres extrínsecos que não tivesse podido dominar. A realidade foi que tudo teve de sacrificar a êsse conjunto de circunstâncias.

Chegou ao poder em condições extremamente más e angustiosas. Pouco sabia dos problemas federais e do pessoal apto a desempenhar funções públicas na União; sua carreira fizera quase tôda no Estado de Minas Gerais, donde era filho, e isso explica e justifica a deficiência. A mesma causa, em Raul Soares, havia trazido a tremenda conseqüência de se complicar desesperadamente a questão das cartas falsas, que, como um pesadelo, acabrunhou o período eleitoral. Agora, os remanescentes da ignóbil campanha agiam, envenenando‑o no ânimo do Presidente.

Fôra cruelmente ferido em seus mais íntimos sentimentos de brio e de honra; e seu gênio não era daqueles que esquecem e perdoam as injúrias, apesar de haver declarado em seu Manifesto inaugural: "O presidente nunca se lembraria das agressões feitas ao candidato". Ignorava, por completo, que o preço da superioridade moral e mental sempre tem sido: compreensão, tolerância, indulgência e paciência. Perdoar, antes de tudo! . . .

Ademais, considerava a qualquer dissentimento de suas opiniões próprias, como uma prova de inimizade pessoal; e, como nutria uma sorte de convicção mística de ser o agente de uma missão sôbre-humana, tais inimigos, presumidos, eram por êle tidos como inimigos do país e do bem público. Costumava formar apressadamente suas persuasões, prestando ouvido fácil e pronto a intrigas e delações, mesmo não provadas. Leal a seus amigos, indo mesmo em seu apoio até as raias do quase escândalo, não sabia ser generoso, nem mesmo tolerante, para com seus adversários. Em todos seus atos, dominava estranha sensibilidade, incessante e sem dó. Talvez, entretanto, em tôdas as sua falhas fôsse êle mais vítima de exploradores de suas conhecidas fraquezas, do que pròpriamente autor voluntário de muitas de suas mais censuradas decisões.

A sinceridade com que obedecia à sua convicção de estar cumprindo missão superior, parece fora de dúvida. Sua vida  p393 privada era acima de suspeitas. Um mal‑entendido trágico, contudo, predominou em todo o seu govêrno, entre êle e o povo. O Presidente ansiava, sinceramente, por se apresentar aos olhos da Nação como um anjo defensor da pureza da doutrina republicana, e do princípio da autoridade. A intenção era louvável, mas os meios de execução não se achavam no mesmo nível; e a massa dos administradores só enxergava êstes; nêles só percebia uma sorte de baixa ditadura policial, nas mãos de subalternos sem imputabilidade, da mais ínfima classe e da menos respeitável, cujos desmandos lançavam sôbre o Presidente a grita e as imprecações de tôda a parte melhor e decente da sociedade.

Ainda fumegavam tições mal apagados da revolta de 1922, por entre as cinzas da repressão. Nos círculos militares, mesmo entre os elementos tementes à lei e à disciplina, o sentir geral não era simpático, pois Bernardes — desconhecido por inteiro a vida militar, seus melindres, seus ideais e sua psicologia — olhava para todos os oficiais, quer insubordinados, quer perfeitamente respeitadores da lei, com tendências de suspeitas e de difidência hostil. A prova mais eloqüente dêsse grande êrro está no fato indiscutível de que, fôssem quais fôssem suas idéias pessoais, o grosso dos quadros cumpriu seus deveres de soldados: esmagaram a insurreição de 1924‑26, e, entre cêrca de 5 000, apenas algumas dezenas, menos talvez de 200 oficiais, foram achados culpados de atos de insubordinação.

Tempos de guerra civil dão sempre exemplos abundantes de abuso e de ilegalidade. Todos os esforços estando polarizados pelo combate decisivo contra a violência armada, passam para plano secundário tôdas as demais considerações. Justiça e lei, raramente, estão presentes de modo contínuo, e com eficiência suprema, nesses dias perturbados. Aí talvez se encontre a atenuante de muito ato indefensável. Em conjunto, porém, o país se sentia arruinado e infeliz, num ambiente quase irrespirável. As operações militares absorviam largas somas, nem sempre passíveis de completa fiscalização. Cada êrro ou falta era explorado, e ampliado pelos ódios partidários, tanto mais perigosos porque era murmuradas críticas e insinuações e nunca tomavam corpo. A repressão exercida agia às cegas, apaixonadamente, despida de senso e de serenidade.

 p394  Triunfaram, entretanto, a ordem e a lei, graças à disciplina da maioria esmagadora de oficiais e praças.

229. A obra realizada. — Embora a administração se visse reduzida a um mínimo, pois as perturbações civis monopolizavam tôdas as atenções e todos os esforços, e, por êsse motivo, não podia ela se exercer senão em meio à desordem, alguns atos de importância capital devem ser apontados a crédito do Presidente.

A revisão da Constituição foi o primeiro. Poderia ela ter sido mais ampla, mais complexa e fundamental, é certo, e melhorar regras que 35 anos de prática do regime haviam evidenciado serem defeituosas. Tudo, porém, não se pode fazer de uma só vez, em uma assentada só. Como se fêz, reforçou o sentido da ordem, tornou o voto do orçamento mais fácil e mais regular, limitou a tendência crescente do Poder Judiciário a invadir atribuções meramente políticas.

Acima de tudo, pôs um paradeiro ao receio supersticioso de tocar no Estatuto, mesmo após a prova provada por muitos anos da necessidade da revisão. Já agora, periòdicamente, as emendas aproveitáveis poderão ser estudadas e postas em prática, ou para atender a exigências novas do país, ou para revogar dispositivos vigentes que se tenham revelado inconvenientes.

O segundo ato referiu‑se à taxação. Em 1891, a União havia sido sacrificada aos Estados, e êstes, com a exceção isolada do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais, dificultavam quanto podiam o desenvolvimento normal, lógico e necessário do impôsto sôbre a renda. A solução definitiva dêsse problema do ponto de vista federal, deve‑se ao Presidente Bernardes. A extensão da rêde ferroviária cresceu a 31 332 759 metros; os telégrafos foram a 51 487 554 metros, com um desenvolvimento de condutores de 96 186 712 metros.

230. Eleição presidencial de Washington Luís. — Era esperado com ansiedade o fim dêsse período presidencial, na esperança de cessar a aflitiva atmosfera do momento. Talvez por isso, o primeiro magistrado da Nação, substituto de Bernardes, Washington Luís Pereira de Sousa, atualmente em exercício, foi eleito sem oposição. O país inteiro estava cansado da luta vigente  p395 no quadriênio a se encerrar. A 15 de novembro de 1926, se deu a passagem do govêrno ao presidente eleito.

Estava restabelecida a ordem. Em tôdas as casas reinavam a paz e a tranqüilidade. Era muito difícil e pesada a tarefa de liquidar o tremendo passivo do período de guerra civil que êle havia herdado. Até hoje, largas quantias estão por serem pagas. Lentamente e sem pausa, o caso está sendo dominado e pôsto em ordem.

Duas das medidas características para restabelecer a confiança cordial do público no govêrno, foram as escolhas escrupulosas do pessoal idôneo para preenchar vagas no Supremo Tribunal Federal, e a perfeita legalidade da grande maioria dos atos emanados do Poder Executivo. O principal esfôrço do Presidente tem sido estabilizar o câmbio. Indiscutível o escopo, que é o inspirador da humanidade desde que circula a moeda, a política posta em prática para o realizar tem sido alvo de numerosas críticas e divergências.

A extensão ferroviária ascendeu a 31 815 950 metros; os telégrafos estendem‑se por 55 409 076 metros, representando um desenvolvimento de condutores de 105 961 005 metros.

Voltou o Brasil à sua velha tradição política de solidariedade internacional, especialmente mantida com nosso hemisfério Ocidental: a Conferência Pan‑Americana de Cuba, e a recepção do Presidente Hoover no Rio, bem como a visita do Presidente do Paraguai, Guggiari, à nossa Capital, foram eloqüentes provas dessa restauração do rumo tradicional de nossas relações com as nossas co‑irmãs, as Repúblicas das Três Américas.

231. Conclusões. — Dessa resumida exposição dos acontecimentos, compendiando quatro séculos da vida do Brasil, algumas lições podem ser deduzidas sôbre as tendências permanentes de nossa formação histórica.

A primeira é o senso crescente de unidade nacional, embora nascido de um semente de desintegração. Foi a conseqüência da política do Império, em oposição ao conceito dominante na antiga metrópole portuguêsa, quanto ao modo de constituir um império colonial, conceito pelo qual se deviam manter apertados os laços entre as capitanias e a cabeça da monarquia lusitana e tornar difíceis e cheios de tropeços os liames entre as capitanias.

 p396  Durante os primeiros 20 anos após a Independência, a unidade foi perturbada pelos restos da antiga mentalidade metropolitana. Terminaram, daí por diante. Desde 1845, tal sentimento vai em linha ascendente, e tornam cada vez mais fortes os argumentos sôbre conveniência e unidade essencial de tôdas as regiões do país.

A necessidade de dar a cada zona do Brasil a administração local que precisa, para melhor garantir seu próprio ambiente de progresso, levou à federação. Como os laços federais e a dependência ainda são muito enérgicos, acontece freqüentes vêzes que as medidas do Govêrno Central chegam a seu ponto de aplicação com grande atraso. Isto levanta uma grita contra a dependência, e certos espíritos exaltados apelam para a secessão como receita única adequada para o livre desenvolvimento de cada região.

Em realidade, não existe entre União e Estado sentimento separatista. Tôda nossa História o prova, principalmente no Rio Grande do Sul, onde tal corrente se quer descrever como fortíssima: a insurreição de 1835‑45 exigia, muito mais do que a independência, a autonomia local; foi precisamente um grito de ameaça contra a União, vindo do Rio da Prata, que pôs têrmo à revolta, e fêz todos êsses ótimos brasileiros cerrar fileiras em tôrno da bandeira da Pátria.

Outra conclusão a que chegamos, é a mudança profunda ocorrida na atmosfera moral do conjunto internacional da Sul-América. A princípio, tínhamos herdado prevenções e ódios reinantes entre Lisboa e Madri, transmitidos assim a seus descendentes de nosso continente. Ainda, embora em grau atenuado, existe nas classes populares, como estado de espírito sentimental, não racionado, resto evanescente mentalidade hereditária em via de extinção.

Desde a era dos cinqüenta, começou a ver diminuida sua influência nos círculos políticos. Embora, nas rodas mais altas da sociedade, certas individualidades retardatárias ainda vibrem ao influxo da rivalidade dos dois troncos atávicos, pode‑se afirmar que já não move nossas diplomacias. Uma das grandes vitórias morais de nosso século XX foi promover aberta e sinceramente uma intimidade maior entre americanos de descendência espanhola e portuguêsa. Não há exagêro em dizer que  p397 estamos ràpidamente caminhando para um ambiente de solidariedade irrestrita e cordial, no conjunto da América do Sul.

Quanto aos Estados Unidos, diferenças existem. É talvez o Brasil a nação mais próxima da Norte América do ponto de vista político, pois nossa intimidade e comunhão de idéias datam dos primeiros dias de nossa Independência. A doutrina de Monroe muito cooperou para criar tal ambiente e entendimento, pois que, desde o primeiro momento, nos consideramos co-responsáveis nela, como regra comum de ambos os povos, e não como mera norma norte-americana interna.

Podem ter surgido alguns desentendimentos em outras Repúblicas, pelo êrro positivo de que, em geral, os organismos latino-americanos não têm sido devidamente estudados nos Estados Unidos. Imenso progresso tem sido experimentado, contudo, nestes últimos anos, pois o govêrno de Washington já compreendeu que, nos dias que correm, as idéias de 1823 estão decididamente caducas e são ineficientes em sua forma primeira.

Dêssa evolução comum, resultará uma crescente comunhão de ideais, pelo Continente em fora. Tal solidariedade internacional não se conquistará de chôfre, mas terá ser uma construção cada vez mais contínua e mais poderosa.

Cada qual de nossas unidades sul‑americanas, seguindo o exemplo de nossa irmã do Norte, procura tirar o máximo partido de suas riquezas naturais, cada uma segundo as características que a definem. Aqui se acham os maiores contrastes a serem encontrados, pois os fatôres morais diferem vastamente de um para outro país.

O Brasil tem‑se dedicado a essa tarefa com o maior esfôrço, com o sentimento profundo de nunca perder sua individualidade, tanto espiritual como social, de um grande povo católico. Estamos íntima e inabalàvelmente decididos a nunca deixar de ser o que somos.

Nosso é, porém, um dever muito grave atingir e manter nossa maioridade política na ciência de governar, a ciência do homem de Estado. Tem variado mais do que devera, e a medida dêsse fato reside na capacidade, maior ou menor, dos nossos condutores do povo em compreender e agir no nível nacional, de um  p398 ponto de vista coletivo nacional e internacional, a um tempo, e sem alvos pessoais. Aqui, como em tôdas as nações, vastas oscilações se revelam na curva representativa de nossa eficiência peculiar.

Nossos ideais foram explanados em uma sessão memorável do Congresso Científico Latino-Americano do Rio de Janeiro, em 1905, enunciados pela nobre e grande voz do Barão do Rio Branco:

"Mesmo quando o Brasil, vivendo sob outro regime que o atual, era, na frase do ilustre General Mitre, uma verdadeira "democracia coroada", e a diferença de forma de govêrno podia fazer crer em diferenças de ideal político, mesmo então não foram menos amistosos os nossos sentimentos para com as Repúblicas limítrofes, e nunca nos deixamos dominar de espírito agressivo, de expansão e de conquista, que mui injustamente se nos tem querido atribuir. Hoje, como naquele tempo, a Nação Brasileira só ambiciona engrandecer‑se pelas obras fecundas da paz, com seus próprios elementos, e dentro das fronteiras em que se fala a língua dos seus maiores; e quer vir a ser forte entre vizinhos grandes e fortes, por honra de todos nós e por segurança do nosso continente, que talvez outros possam vir a julgar menos bem ocupado."

Em 1906, ao encerrar as sessões da Conferência Pan‑Americana do Rio de Janeiro, mais uma vez delineou as normas dessa política de longo alcance:

"A opinião pública transvia‑se muitas vêzes. Não raro, um vento de insânia, despertando instintos bárbaros, açoita e abala os povos, mesmo os mais cultos e cordatos. O dever do estadista e de todos os homens de verdadeiro senso político é combater as propagandas de ódios e rivalidades internacionais.

"Nem população densa, nem dureza de vida material podem tornar o Brasil suspeito aos povos que ocupam êste nosso Continente da América.

"Às Repúblicas limítrofes a tôdas as Nações Americanas, só desejamos paz, iniciativas inteligentes e trabalhos fecundos, para que, prosperando e engrandecendo‑se, nos sirvam de exemplo e estímulo à nossa atividade pacífica, como a nossa grande e gloriosa  p399 irmã do Norte, promotora dessas úteis conferências. Aos países da Europa, a que sempre nos ligaram e hão de ligar tantos laços morais e tantos interêsses econômicos, só desejamos continuar a oferecer as mesmas garantias, que lhes tem dado até hoje o nosso constante amor à ordem e ao progresso.

"Levareis, Srs. delegados, aos vossos governos e à vossa Pátria estas declarações que são a expressão sincera do sentimento do Govêrno e do Povo Brasileiro.

"Possam elas servir para apagar desconfianças mal nascidas e ressentimentos infundados, se ainda os há, e tragam‑nos em troca o bafejo sempre crescente da amizade de todos os povos americanos, amizade que cultivamos com carinho e nunca cessaremos de cultivar."

Ideal nobilíssimo e alevantado, que requer homens para ser realizado!

Exigência idêntica em todos os países, e deve ser extensiva ao mundo inteiro. Não apenas à Norte-América, para a qual, em sua interessantíssima obra Four Years in Germany, o Embaixador James Gerard escreveu: "Há, nos Estados Unidos, número demasiado de pensadores, de escritores e de oradores; doravante, precisamos dos fazedores, dos organizadores e dos realistas, únicos que poderão vencer a contenda para nós, para a democracia e para a paz permanente".

Tais são, precisamente, o ideal e a tarefa do Brasil. Enfrentamos resolutamente as dificuldades do caminho a percorrer, e procuramos solvê‑las com tôda a nossa fé e nosso iluminado entusiasmo.

Um sentimento profundo nos guia e nos alenta: a convicção absoluta de que, assim como o século XIX pode ser qualificado o século do Japão e dos Estados Unidos, o seguinte, êste em que estamos vivendo e exercendo o nosso melhor esfôrço, merecerá receber o nome de século da América do Sul.


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Página atualizada: 4 Out 13