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Capítulo 1

Esta página reproduz um capítulo de
Formação Histórica do Brasil
de
João Pandiá Calógeras

Companhia Editora Nacional
São Paulo, 1966

O texto é de domínio público,
exceto para meus anotações.

Esta página foi cuidadosamente revisada
e la creio livre de erros.
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por favor me avise!

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Capítulo 3

 p21  Capítulo II

Organização econômica. Valôres exportáveis

Do ponto de vista econômico, que era, que poderia vir a ser esta colônia, extensa em demasia para uma metrópole como Portugal, pequena e de recursos limitados?

17. A terra. — Área imensa coberta de densa vestimenta florestal; ainda em nossos dias, calcula‑se em cêrca de 50% a superfície de matas existentes, e para acharmos a proporção vigente em tempos idos, deveremos somar os trechos derrubados para fins agrícolas. Os algarismos mais aceitáveis andariam por 60% no século XVI e no seguinte.

Solo rico e fecundo, com espêssa camada de humo, capaz de largas colheitas de cereais regionais, nem trigo, nem aveia, nem cevada, contudo, pois, êstes seriam, como ainda são, culturas exóticas; mas apto a produzir fartas messes de alimentos próprios, como milho, mandioca, batatas-doces e bananas.

Mares, lagos e rios onde abundava o pescado de tôda sorte. Colmeias naturais cheias de enxames a trabalharem, tanto no chão como nas árvores. Caça, não excessiva, mas em quantitade razoável, nos vales, nas chapadas e nos bosques. Temperaturas, sem extremos de sacrifício para a vida humana: mesmo sob o Equador, toleráveis sob o influxo das brisas periódicas e das chuvas regulares; ausência de frios realmente cortantes e incômodos.

18. A população. — População antes escassa e distribuída com densidade pouca, a percorrer, pouco sedentária, planícies  p22 e florestas. Fìsicamente forte, curada pelas intempéries, astuta em sua prática cinegética, dissimulada, sem noção de responsabilidade individual, e lançando sôbre a coletividade adversa o pêso da vingança de qualquer falta o crime de qualquer de seus membros.

Obedecia a seus chefes, caciques ou morubixabas, a seus curandeiros e feiticeiros, pajés, e era fácil e simples no trato. Incapaz de esforços persistentes e trabalho uniforme, possuíam instrumentos rudimentares para suas necessidades caseiras e agrícolas. Desconheciam metais, e usavam machados de pedra polida, maças ou tacapes de madeira, arcos de madeira curada, armas pontiagudas de osso ou de pedra, lascas de mesma natureza para ponta de flexa, anzóis de osso.

Viviam geralmente em tribos de poucas centenas de indivíduos. Como dependessem, para sua alimentação, da riquezas naturais, estavam quase sempre a vaguear, logo que se esgotassem os recursos da região ocupada em mel, frutas ou caça e pesca.

Sua indústria era primitiva: só excepcionalmente produziam algum trabalho de inspiração artística, como rêdes hàbilmente tecidas, obras de vime, cerâmicas mais ou menos ricamente decoradas, enfeites de penas vistosos.

Sua atividade guerreira era constante, e manifestava‑se pelo mais insignificante motivo ou mesmo pretexto: territórios de caça invadidos ou contestados, mulheres raptadas, profecias de feiticeiros, ameaças políticas ou vingativas. Algumas tribos mumificavam seus mortos. Outras, relativamente raras, retiravam os ossos das cabeças, dessecavam e mumificavam estas, na região hoje limítrofe com o Peru e a Colômbia. A antropofagia era geralmente uma prática ritual.

19. O elemento invasor. — O invasor português era um rude exemplar humano. Sêde de pilhagem e de sangue eram atributos normais em tais tempos; religião e superstição, ódio aos incréus que perseguia, eram feições comuns. Nos primeiros períodos eram poucos demais para fazerem face às tribos, e assim ficaram quietos. Quando comandados por chefes enérgicos e severos, que os mantinham em sujeição estrita e disciplinada, também se reduzia a um mínimo o atrito com o silvícola. Mas essa era  p23 uma situação instável e pouco duradoura, pois a mestiçagem logo se iniciou e derrubou as bandeiras. Os forasteiros iam às tabas indígenas; os índios vinham aos estabelecimentos litorâneos: e as rixas começaram.

Dessas desinteligências locais, derivaram numerosas guerrilhas entre as duas raças. Obra precípua dos missionários católicos, quase constantemente em contato com os autóctones, que os respeitavam, a pacificação pôde firmar‑se. De tempos em tempos, quando as ofensas dos brancos se tornavam por demais numerosas e graves explodia novamente a justa ira das vítimas e eram de se temer as conseqüências da crueldade vindicativa do selvagem.

Por esta forma, não poucas das feitorias fundadas por portuguêses, imprudentes no trato com o habitante primitivo, ou incapazes de manter disciplina entre seus comandados, desapareceram. A costa do Espírito Santo a Bahia foi pràticamente abandonada, e até hoje mostra falhas largas em seu povoamento, como resultado dos ataques levados a fundo pelas malocas irritadas até o desespêro, especialmente pelas descidas dos aimorés. A reação dos descendentes de europeus iniciou‑se em comêço do século XIX, tão sòmente.

Tal espírito briguento acalmou‑se, entretanto. Os colonos viram aumentar seu número e sua fôrça; cruzaram em massas crescentes com as cunhãs; o mameluco foi aos poucos predominando e alargou o âmbito de sua função histórica e social. Os jesuítas penetraram no sertão em sua faina catequista, batizaram colomis e gente grande; muita vez, atraíram para a costa levas inteiras de peles-vermelhas, que se irmanaram à beira-mar e foram absorvidas e se sumiram pelo contato destruidor da chamada civilização branca.

Doutras feitas, colorindo suas razias desumanas sob o pretexto de guerra contra a idolatria, os colonos ajuntavam‑se em companhias de vulto, e invadiam o sertão; atacavam os vilarejos dos naturais, capturavam seus moradores e com êles voltavam para a orla ocupada pelo elemento dominador. Tais expedições, chamadas entradas ou bandeiras, eram um flagelo: o receio que inspiravam ao índio era tal, que êste ia fugindo para o interior das terras a afastar‑se cada vez mais das praias. Os caçadores  p24 de carne humana acompanhavam sua batida, sertão adentro, até que os itinerários atingissem e ultrapassassem a fronteira convencionada com Castela.

20. O problema da mão-de‑obra. — A verdadeira razão de tais internações era um problema de mão-de‑obra. O Brasil, não tendo ainda revelado haveres minerais, só podia ser colônia agrícola. Os portuguêses, por demais escassos, não possuíam braços bastantes para o cultivo de suas fazendas nem para a extração do pau‑brasil. Saída única para tais dificuldades deveria ser arrancar, por quaisquer meios, trabalhadores baratos do viveiro aparentemente inesgotável da população regional. A escravidão surgiu de tal necessidade econômica.

Desde as primeiras ocorrências, os jesuítas protestaram contra semelhante política, e por mais de um século moveram guerra incessante contra ela, os missionários a protegerem os índios, os colonos a prearem impiedosamente as malocas sob a pressão das exigências econômicas. A Companhia de Jesus muito sofreu por sua generosa proteção aos catecúmenos. Nunca abandonou essa nobilíssima defesa, e com isto granjeou imorredoura glória aos filhos de Santo Inácio de Loiola.

De puro ponto de vista de negócio, a solução do índio provou má. Eram criaturas primitivas, filhas da selva e dos campos; não resistiam à vida em recintos fechados como eram as casas dos brancos, nem ao esfôrço contínuo aturado e duro do trabalho de culturas à moda européia ou de indústrias dos engenhos. Morriam aos magotes, quando escravizados. Muitos suicidavam‑se. A maioria evadia‑se para as florestas. Em menor número, iludidos e presos pela astúcia do colono, perdiam todo estímulo e permaneciam no cativeiro; nêle não tinham vida longa, vítimas indefesas do sarampão, da varíola, da bebida, do ar confinado, fatôres de rapidíssima eliminação. Novos bandos predadores investiam o sertão a descerem novos rebanhos de gado humano, cada vez mais difíceis de se conseguirem pelo progressivo alongamento das regiões fornecedoras.

Renovaram‑se os fatos já notados na América Central, ao tentar obviar‑se aos protestos de Las Casas em sua indignada cruzada contra as atrocidades espanholas relativas aos índios. No  p25 Brasil também, acudiu aos colonos e ao govêrno português a oportunidade de importar negros africanos em substituição do silvícola revoltado e preguiçoso.

21. A escravidão negra. — Grande incerteza reina quanto à data da chegada à América lusa dos primeiros africanos. Supõe‑se hajam vindo à Bahia, por 1538. Uma vez pôsto em movimento, nunca cessou o afluxo servil até à abolição do tráfico, em 1850.

Nisto não havia novidade para europeus, e principalmente para portuguêses. Lisboa, ia para mais de século, fôra mercado importador de escravos negros para necessidades locais e para exigências do consumo alienígena. A princípio, na Europa, e em seguida para ambas as Américas, as colônias portuguêsas eram os bem conhecidos fornecedores, claramente confessados à luz meridiana.

Sempre de um ponto de vista puramente utilitário, assim como a solução do índio fôra um desastre, a do negro revelou‑se preciosíssima e valiosa. Socialmente, estava o africano em nível muito mais alto do que o aborígine americano. Enquanto êste se achava mergulhado em pleno período neolítico e alcançava apenas o estado fetichista, o negro importado era‑lhe de muito superior, conhecia e trabalhava metais, ferro principalmente, possuía uma arquitetura própria, reverenciava tradições e, mesmo, muitos dêles eram monoteístas, conquanto a maioria pertencesse ao puro paganismo. Estavam afeitos à vida sedentária e sabiam servir‑se de utensílios de modo a fornecerem operários bons e mão-de‑obra hábil.

O índio não tolerava o esfôrço debaixo de coberta, enquanto o negro aí prosperava normalmente, tanto quanto ao relento e à atividade das fainas agrícolas. Mais forte e mais resistente, sua eficiência excedia em muita dos silvícolas. Cativos, êstes morriam aos montes. O sangue africano multiplicava‑se, ao contrário, em meio às mesmas durezas que destruíam o americano. Sua taxa de natalidade era a mais alta das três raças concorrentes.

Por outro lado, conseqüência talvez das condições desfavoráveis, ou por outros elementos biológicos, sua mortalidade excedia a do branco e mesmo ultrapassava a natalidade própria. Desta forma, sua vida média não ia além dos 25 anos. Como,  p26 entretanto, a importação de novos carregamentos de gado humano era fàcilmente obtida, de todos os pontos de vista e o escravo negro valia por imenso progresso.

Não exagera quem disser que, sob a direção do branco, êles realizaram todo o trabalho material e os esforços preciosos para criar e construir o Brasil. Em um caso, mesmo, foram guias dos brasileiros: seu é o mérito da primeira indústria de preparo direto do ferro, nas forjas rudimentares de Minas Gerais, fruto natural da ciência prática infusa nesses metalurgistas natos que são os africanos.

Pedia o desenvolvimento do país suprimentos crescentes de braços; tanto mais, quando as condições de tempo e de espaço da terra e suas características dominantes impunham um caminho único de atividade, a economia naturista, como lhe chamam os alemães, utilização direta e imediata dos recursos naturais.

Durante a fase inicial, estreitamente ligados ao litoral, por ignorância e receio do sertão, os colonos viam‑se constrangidos a viver como em praças assediadas. Por trás das cêrcas de madeira altas e dos valos de defesa de trincheira, tinham de se manter de pescado, alguns legumes, aves de terreiro, porcos importados, e mais tarde, gado vindo de ultramar, da Madeira e de Cabo Verde. A missão dessas feitorias era multiplicar fortins de resistência contra os ataques dos silvícolas; feitoria comercial para as trocas com êstes, terra de cultura, para se produzir o que em tais limitados chãos se pudesse obter.

22. A pacificação. A organização econômica, ao Norte. — Decorreram alguns anos, antes que se não houvesse mais que recear os ataques dos índios; só então as fazendas, como se apelidavam tais feitorias, puderam desenvolver‑se por áreas mais extensas e alongadas. Pela mesma época, a cana-de‑açúcar foi importada da Madeira, e engenhos rudes de pau se fundaram de fogo direto para a concentração das garapas nas tachas, iniciando‑se destarte uma rudimentar indústria açucareira. Tais engenhos, como se chamavam, constituíram a unidade econômica basilar da terra. Autônomas, vivendo sôbre si, poucas comodidades teriam de importar de Portugal, principalmente vinho e azeite. Cultivavam e colhiam algodão e teciam fazendas grosseiras. Gado, aves, suínos, cresciam e multiplicavam‑se em abundância. Peles e  p27 couros decorriam da criação dos gados. O açúcar dava também a cachaça.

Dentro em breve, houve largo excedente de tais produtos, e os colonos começaram a exportá‑los para a metrópole nos navios portuguêses que iam à colônia americana, únicos autorizados a lhe freqüentarem os portos.

Tal organização econômica, contudo, exigia largo dispêndio de trabalho. Derrubadores para roçarem o mato das plantações; agricultores para limparem as derrubadas e prepararem o terreno para as semeaduras, as carpas e a colheita das messes, o transporte das canas ou das espigas de milho e das demais culturas; operários especiais para construírem ou remendarem os engenhos, as rodas dágua, os canais ou regos; remadores para barcos e lanchas em que se transportavam rio abaixo até o oceano as utilidades colhidas ou preparadas; caldedeiros para tachas, carapinas, marceneiros, ferreiros, pedreiros, serventes, fazedores de tijolo e de telha; criados de tôda espécie para as necessidades caseiras; caçadores e pescadores para sustento da fazenda; guardas para protegerem família e propriedades; tais eram em resumo as mais importantes formas de trabalho impostas aos empregados e escravos. Índios só agüentavam algumas de tais fainas: quanto à maioria dêles, eram inaptos, delas fugiam ou morriam em seu desempenho; excepcionalmente, conseguiam acostumar‑se a criação de gado. Os negros não logravam escapar do cativeiro, pois o índio lhes não era afeiçoado. Daí resultava que, de ano para ano, se intensificava o tráfico negro.

O gado havia encontrado condições favoráveis de desenvolvimento em tôda a região da Bahia e de Pernambuco. Ao longo das antigas trilhas dos indígenas, levando ao interior da bacia do rio São Francisco, construíam‑se ranchos novos, os chamados sobrados, em que assistiam os vaqueiros das fazendas de gado que ali se abriam: a população, vasqueira embora, ia‑se espraiando. Em fins do século XVI, o sertão já havia perdido no ânimo dos moradores a auréola de terror que dantes inspirava. As tribos mais temerosas haviam sido repelidas da costa. No fim do século imediato, as fazendas de gado tanto se tinham multiplicado no vale dos rios principais da região, que o São Francisco recebeu o nome habitual de rio dos currais.

 p28  Foi esta uma das feições mais importantes da colonização do Brasil. As feições topográficas da região revelavam divisores de águas bastante moderados de uma para bacias contíguas no Brasil central, incapazes de oferecer embaraços à progressão dos rebanhos terras adentro. Partindo da Bahia, pioneiros foram plantando seus sobrados rumo do São Francisco, atravessavam‑no e, subindo por seus afluentes, penetraram na zona do Norte e do Nordeste.

23. A organização econômica, ao Sul. As minas. — Ao Sul da colônia, outro era o aspecto das coisas.

A cana tinha sido trazida para aqui, em São Vicente e em São Paulo, mas encontrara condições menos favoráveis do que ao Norte. O gado não predominava como na Bahia nas atividades locais. As fazendas tinham de ser abertas e dirigidas segundo rumos diferentes dos da região setentrional. Enquanto Recife, Bahia, tinham valiosos produtos a exportar para Portugal, Santos, pôrto das capitanias de Santo Amaro e de São Vicente, remetia muito menos. O tipo de vida econômica aproximava‑se mais do de uma colônia de povoamento. Produziam tudo quanto fôsse preciso para seu sustento, mesmo uvas viníferas e algum trigo, usado em bolos, biscoitos e tortas mais do que no fábrico de pão: isso lhes era facilitado pel temperatura menos elevada decorrente da latitude mais austral da terra e pela altitude de planalto interior onde se haviam localizado as agremiações de povoadores.

A linda de Tordesilhas, muito afastada da costa no trecho central da Bahia, passava bastante perto de São Paulo. A zona intermediária tornava‑se região contestada onde sem trégua portuguêses e espanhóis contendiam.

Um dos preconceitos dominantes nos potentados dêsses longínquos tempos era ostentar riquezas, e estas avaliavam‑se pelo número de escravos de cada qual. Muito mais do que no Norte, onde havia muitos negros, São Paulo tinha preferência pelo índio. Muitos motivos concorriam para tal situação.

Abundavam os mamelucos, e essa gente era belicosa. A caçada de escravos, combinada com o ódio político entre os dois troncos ibéricos, incentivara as entradas, das quais derivava a  p29 constante, lenta, mas irreprimível pressão sôbre a ocupação castelhana, forçada a recuar sem pausa para o rio Paraguai. As reduções jesuíticas, colônias de indígenas dominadas e regidas pelos filhos de Santo Inácio, iam sendo destruídas aos poucos e constrangidas a remover‑se para paragens outras, principalmente entre Paraguai e Paraná, por um lado, e para sul do Uruguai, por outro. História sombria, de crueldade e de sangue, à qual se deve, entretanto, o dilatar do território do Brasil.

Pequenas parcelas de ouro haviam sido descobertas nessa região, em ambas as vertentes do grande divisor de águas, a Serra do Mar. Esta linha de cumeadas, de cêrca de 1 200 metros de alto, encostada ao oceano por um lado, a Oriente, afastada apenas de vinte a cento e cinqüenta quilômetros do litoral, de Santos a Santa Caterina, definia a vertente direta do Atlântico, da que drenava as águas para o estuário do Prata. A pesquisa do ouro era uma tarefa permanente imposta a si próprios pelos sertanistas todos. Provavam‑se areias e cascalhos de tôdas as ribeiras atravessadas, pois ignoravam, mineiros inexperientes, jazidas de beta e só conheciam as aluviões metalíferas. Não procuravam vieiros, portanto.

De fato, todos os depósitos revelaram‑se limitados em extensão e teor. Ainda assim, não esmoreceu a procura. Parecia, entretanto, formar‑se uma opinião generalizada de que a perspectiva nesta região era menos desanimadora do que em outras. Não despertava grandes esperanças, contudo: ainda um século teria de decorrer antes de se revelarem os tesouros de Minas Gerais.

Alinhando todos êsses fatôres, certas conclusões pareciam impor‑se.

Até o fim do século XVII, o Brasil revelava‑se apenas país agrícola, desprovido de haveres minerais em grau suficiente para constituir fonte importante de riqueza pública.

24. A mestiçagem. O tráfico. — A população mestiçada de gente falando português não excederia de 100 000 almas. Constituíam, em largos traços, seis núcleos principais: Bahia, Pernambuco, Maranhão e Pará, Rio de Janeiro e Santos-São Paulo. Tal avaliação não incluiria os índios a vaguearem pelas brenhas.

 p30  Nesse total, o elemento branco puro era uma minoria. Os elementos oficiais e os colonos formariam uma casta superior, sendo que os nascidos em Portugal se considerariam acima dos que houvessem por berço a colônia. Êstes últimos vinham em segunda linha, muito pouco considerados pelos reinóis vindos da Europa, e êles aceitavam essa diminuição de conceito e de classe.

Apareciam, então, os mestiços de índios, que não admitiam fôssem colocados no mesmo nível dos mulatos ou dos demais cruzados de brancos e negros; alegavam, antes, a ascendência paterna, a proteção que, oficialmente, Portugal lhes dispensava, ao promover os casamentos mistos entre europeus e autóctones. Depois dos mulatos, vinha uma indescritível mistura de inomináveis cruzas: mulato-índio; índio-negro. Finalmente, estrato basilar, os escravos vermelhos, e, ainda mais baixo, a massa africana e sua linhagem racial.

Dados estatísticos são impossíveis de dar. Quando muito, algumas sugestões ousadas se poderiam mencionar.

Tribos, fora da ação dos portuguêses, talvez não numerassem mais de 800 000 cabeças.

Os mais antigos cronistas, por 1583, estimavam a população do Brasil em 57 000 almas: a 25 000 brancos, 18 000 índios civilizados, e 14 000 escravos negros. A maioria dêsses eram encontrados em Pernambuco, e o restante na Bahia, existindo apenas uma centena dêles no Rio. A Bahia era o pôrto de desembarque principal dos africanos.

A atividade agrícola, muito mais intensa no Norte, que exportava para a Europa suas obras de produção enquando de Santos e do Rio nada se remetia para fora, era o elemento distribuidor da escravatura. São Vicente, Santos e São Paulo possuíam principalmente peças do sertão; peças da Índia eram poucas.

Como regra, não eram maltratados. Historiadores da escravidão narram que nas Índias Ocidentais os cativos costumavam implorar se adotassem as regras brasileiras. Consistiam em ordens régias e alvarás de 1688, 1689, 1693 e 1704, pelos quais os proprietários de negros eram obrigados a deixar o sábado libre para seus servos: nesse dia, trabalhavam em proveito próprio. Era‑lhes dada assistência religiosa quando doentes ou em perigo de vida. Obrigatório também era dar sustento aos velhos, inválidos ou enfraquecidos.

Lamentàvelmente deficiente é a informação sôbre os números importados da África, embora se deva ter em mente que, em sua nova pátria, êles não se achariam em situação inferior ao nível miserável de sua existência em sua terra de origem. O que era horrível, a desafiar qualquer descrição, era a travessia marítima do oceano, nos porões apertadíssimos de barcos pequenos, sem ar para respirar, espaço para se moverem, alimentação escassa e corrompida, água infecta para saciar a sêde.

A mortalidade não raro se elevava a 30% e mesmo 40% nesses fôlegos vivos, e não se consideravam anormais; a média de 20% seria aceitável, talvez mesmo otimista. Tumbeiros, sinônimo de esquifes flutuantes, apelidavam‑se em Angola êsses barcos do tráfico.

As maiores fôrças de tais importações recairiam no século XVIII, após o descobrimento das minas de ouro e de diamantes do sertão, e o progresso das áreas cultivadas do Sul. Tentativa conjetural de avaliação, baseada no pouco que se sabe dos documentos oficiais, conduz a números que oscilam em tôrno de 50 000 por ano. Mais provável, no século XVII andariam por 40 000 anualmente, e por 55 000 no seguinte.

Estatísticas precisas, não há. Procuramos sumariar o que se conhece dêsses movimentos demográficos em nossa Política Exterior do Império. De positivo, nada se pode afirmar. Se alguns pontos se podem esclarecer para importações legais, quase nada há quanto às entradas contrabandeadas, e estas poderiam ser o dôbro das primeiras.

Diretamente de Angola para o Brasil, entre 1575 e 1591, 52 053 negros foram exportados, diz um relatório apresentado a Filipe II de Espanha; seriam 3 100 por ano. Mas Angola era apenas uma das capitanias africanas; quanto mandariam as outras? Tais números valeriam para o comércio legal, e os descaminhos?

De Pernambuco, durante a sua fase holandesa, possuem‑se estatísticas cobrindo um decênio, 1636‑1645, no total de 23 163 cabeças, ou 2 300 por ano.

 p32  Nisto se resume quase tudo quanto se sabe sôbre os séculos XVIXVII.

Desapareceram os documentos relativos ao tráfico. No Brasil não se encontram. Talvez alguns ainda se achem nos arquivos de Portugal, ou nos das antigas colônias da Costa da África; até hoje, entretanto, não se divulgaram ao estudo dos investigadores de nossa história colonial.

25. As conseqüências. — Para se ter idéia aproximada do que foi êsse fluxo negro invasor, parece só existir meio indireto de avaliação: tomar por base a sobrevivência, quando pela vez primeira se tentou recensear o elemento servil, e calcular com as taxas de mortalidade, de nascimentos e de vida média, a fim de determinar a cota anual capaz de dar em X anos os algarismos que a estatística forneceu, em início do século XIX. Assim tentamos proceder naquele nosso trabalho, tendo achado por média anual 55 000 cabeças. Claro que seria menor em início, e iria, em seguida, progressivamente em aumento.

Constituíam os negros a camada social mais baixa. Tão desconsiderada, que lhe discutiam a qualidade humana. Foi preciso que a Santa Sé os declarasse homens, para serem reconhecidos como tais.

Apesar de tudo, começou logo o cruzamento das raças. Os povos mediterrâneos não experimentavam em face das peles negras a sorte de repugnância dominante na psicologia nórdica. Ainda perdura tal feição sentimental. A descendência abundantíssima, a princípio, do elemento africano puro, começou a diminuir pela decadência de sua pureza de sangue racial: surgiu uma camada, em aumento crescente e ininterrupto, de mestiços, meios-sangues, quarteirões e ainda menos coloridos. Até hoje não parou a diluição pigmentar. E continuam os mesmos fatôres dêsse descoramento dérmico: continuam agentes últimos principais dêle os portuguêses, os espanhóis e os italianos. Êstes últimos, raros nos séculos iniciais, avantajaram‑se em dias nossos, com as mesmas conseqüências biológicas. Há, portanto, um progressivo, contínuo e cada vez mais sensível branqueamento da pele das populações locais.

 p33  Surgiu aqui uma feição peculiar. As uniões com índios ou índias eram perfeitamente aceitas, salvo quando ilegais ou contra os ditames religiosos. Ao contrário, a mistura com o africano era tida como degradante. Os produtos das primeiras nenhum empecilho encontravam em sua existência, quando provenientes de gente livre. A outra classe de mestiços, ao invés do que se dava com a precedente, era desprezada e não se confundia, aparentemente ao menos, com seus superiores, mesmo quando eram livres. Entre os privilégios negados a gente de côr, achava‑se o sacerdócio: por êsse motivo, grande empenho faziam as famílias, de avoengos mais respeitados, em ter entre seus membros padres ou religiosos: era uma prova de pureza de sangue, de ancestralidade reputada, nunca manchada por colusões discutíveis. Para aquêles, novas adições de colaboradores brancos se tornavam precisas, para poderem ascender a níveis sociais mais altos.

Entre tais circunstâncias, foi sendo realizada a fusão das raças, sem obstáculos irremovíveis, a não ser a oposição vitoriosa das estirpes mais ilustres, e isso mesmo nem sempre com sucesso. Com isto sofreu o caráter geral da população.

Os antigos colonos portuguêses eram francos, rudes, de fala simples e sincera, animados e moralmente retraídos; não eram alegres, e custavam manifestar seus sentimentos íntimos de regozijo. O índio era grave, mais ou menos nas mesmas diretivas. Mas o fator africano, em geral, ostentava um perpétuo bom humor, júbilo infantil e expansivo, gáudio pelos menores incidentes de sua vida. Nada mais agradava ao negro do que dançar, cantar, vestir‑se garridamente e apresentar côres brilhantes.

Cheios de contentamento e de juventude, uma réstia de sol iluminava sua alma pueril. Parte desta se infundiu na psicologia do mestiço. Essencialmente sensíveis, dignos de fé e dedicados, capazes de serem levados para qualquer lado por bondade e carinhos e palavras brandas, os negros colaboraram de fato no ameigamento da dureza primitiva do colono português. Nunca, no Brasil, houve levantes comparáveis com as revoltas de cativos das Índias Ocidentais. Apesar de abusos no trato entre senhores e escravos, em geral as relações entre os dois elementos eram  p34 mansas e revestidas de cordura, e por isso a situação do africano em mãos do seu dono no Brasil era invejada por seus irmãos de infortúnio em outros países.

Tal, o lado de sol do problema em nossa terra.

Não se poderiam dizer os mesmos elogios, quanto ao lado da sombra. Minguou a moralidade da parte masculina da população. Surgiu um compreensível, mas lamentável espírito de vingança e de crueldade para com as mulheres de côr, por parte da metade feminina da sociedade branca dos proprietários de escravos, conseqüência das ofensas praticadas contra as espôsas pela incontinência derivada das facilidades que a situação servil proporcionava.

Difícil coisa é proferir um julgamento do caso. Devidamente pesados o bem e o mal, talvez seja eqüitativo reconhecer que o esfôrço principal em construir o Brasil, do ponto de vista material, foi dêles, em seu aspecto econômico. Moralmente, fraquezas lhes podem ser atribuídas, mas seu influxo está sendo combatido e remediado pela educação e pela ascensão gradativa dos espíritos. A mancha negra vai sendo delida aos poucos e tende a extinguir‑se em prazo breve, com o afluxo da imigração branca, na qual a herança de Cam se está dissolvendo. Roosevelt notou com razão que o futuro nos reserva uma grande bênção: ter evitado e solvido um problema altamente perigoso, quiçá mortal — um conflito racial de vida e de morte.

26. Antonil. — Temos um depoimento de notável valia quanto ao influxo recíproco de todos êsses fatôres no início do século XVIII. Uma das personagens principais da Companhia de Jesus na província do Brasil por essa época, era um italiano de Luca, João Antônio Andreoni; havia sido visitador da província, reitor do colégio da Bahia. Sob o anagrama transparente de Andre João Antonil, publicou, em 1711, um livro admirável cujaa extraordinária importância pode ser aquilatada pelo fato de o govêrno português ter confiscado tôda a edição. Poucos, pouquíssimos exemplares escaparam à fogueira, uns seis apenas, ao que se conhece, constituindo, cada qual, jóia preciosíssima das coleções de bibliófilos.

Motivou a supressão o crime de dar informação por demais completa e exata do valor da terra e de suas possibilidades, o  p35 que poderia levar outros países, mais fortes e ricos, ao desejo de conquistá‑lo. Mas existia outra razão mais poderosa ainda para o auto de fé: o livro ensinava aos brasileiros a grandeza e a potencialidade de sua pátria, e poderia exaltar aspirações, principalmente após o êxito vitorioso das guerras do pau‑brasil e da expulsão dos batavos.

Seu título sugestivo: Cultura e Opulência do Brasil, por suas drogas e minas. Drogas, se deve entender como agricultura e seus produtos.

Quando foi publicado, as inas de ouro recém-descobertas forneciam estatísticas das mais surpreendentes, de que falaremos dentro em breve. Mas apontava também a obra para indústrias basilares do país, tabaco, peles, couros, açúcar, criação de gado, e outras. Não variaram muito tais formas de atividade, e, em conjunto, poderemos tomar os algarismos divulgados como estatísticas fidedignas para o fim do século XVII, embora se refiram a 1711.

Por aí sabemos que a Bahia contava 146 engenhos, com uma exportação de sobras montante a 14 500 caixas de açúcar, pesando 35 arrôbas cada uma. Pernambuco produzia menos: 246 engenhos não expediam mais de 10 300 caixas. Rio, com 136 engenhos, exportava 10 220 caixas. Era um total de 37 020 caixas, pesando aproximadamente 1 300 000 quilogramas, e valendo naqueles tempos 2 535:142$8 réis, moeda portuguêsa. Hoje, o valor andaria por quinze aquela quantia.

Maranhão construiu cêrca de cinqüenta engenhos, mas abandonou‑os, preferindo dedicar‑se a colheita de castanhas, cravo e côco.

Fumar, a princípio, era tido por prática diabólica, costume dos índios idólatras. Aos poucos, a censura eclesiástica abrandou sua condenação e permitiu o uso do tabaco. Sua cultura veio a tornar‑se uma das grandes indústrias do Brasil, e assim continuou até hoje. Em fins do século XVII, a Bahia exportava 25 000 rolos: Pernambuco e Alagoas 2 500.

A criação de gado havia crescido muito e tomado largo desenvolvimento. Diz Capistrano de Abreu que o uso do couro caracterizaria a época, e propôs se desse à fase colonial em questão o nome de idade do couro. De fato, em tôda parte, em  p36 todos os misteres, se achava o couro: nem só no Brasil, mas em todo o continente. Alguns anos depois de Capistrano, um estudioso uruguaio fêz a mesma observação e propôs a mesma caracterização, para a população da bacia do Rio da Prata.

Alguns números bastam para apontar o alcance de tais fatos. O tabaco exportava‑se em rolos, cosidos em surrões de couro cru. Bahia remetia 50 000 meios de sola; Pernambuco mandava uns 40 000 e Rio cêrca de 20 000, nestes se incluindo os que vinham da colônia do Sacramento. Além disso, dêsses meios de sola representando umas 55 000 a 60 000 cabeças de gado, todos os instrumentos, ferramentas, mobília, calçado, roupas, etc., devem ainda ser acrescidos, o que eleva o total a um consumo ânuo de cêrca de cem mil bois.

Antonil dá cifras aproximativas sôbre criação bovina. O vasto condensador de rebanhos era o vale do São Francisco, em ambas as margens. A do Norte era povoada por mais de 800 000 cabeças; seus donos eram pernambucanos; a Nordeste, além dos divisores baixos das bacias fluviais, largas massas haviam enchido Piauí e Maranhão, cujas pastagens eram ótimas. A Sudoeste, as manadas haviam invadido imensas planícies desconhecidas, à margem direita do caudal, e iam estendendo‑se por essas paragens baianas. Mais de quinhentos ranchos estavam espalhados por essas devesas, e iam caminhando rumo de Minas Gerais. Como veremos, tal extensão gradual à procura do rio das Velhas, na capitania central, permitiu fornecer a solução única para o problema da fome, da alimentação das massas de forasteiros que, nos últimos anos do século XVII, e nos primeiros do seguinte, as então descobertas jazidas aluvionais, e assim criaram a terrível crise de miséria faminta, em região virgem que nada tinha preparado para receber tal afluxo de aventureiros. Esta margem direita do São Francisco reputava‑se conter mais de 500 000 cabeças de gado.

Some‑se a isto a produção local para usos caseiros, quer alimentares quer de vestuário; taxas e arrendamentos; monopólios e doações; e bem se pode concluir que o Brasil já pagava seus gastos.

27. Ausência do meio circulante. — Curioso é, e mereceria indagação mais minudente que aqui não pode ser feita que  p37 todo êsse surto se realizava sem auxílio de dinheiro. Ou antes, para ser mais preciso, a moeda só aparecia como medida comum de valôres, pois não havia, ou era meramente rudimentar, a presença de signos monetários.

Como regra, no interior, se impusera um sistema de trôco generalizado, um escambo pelo qual os colonos se haviam criado o méio único de solver transações comerciais. Quando se não podiam compensar exatamente os negócios recíprocos, os saldos pagavam‑se em escravos, gado, fio de algodão, açúcar ou tecidos. Mercadorias importadas amortizavam‑se pelas comodidades remetidas para o reino; os créditos do balanço era talvez a única ocasião de movimentar moeda cunhada. Esta, entretanto, só circulava, talvez com a exceção única das cidades do litoral, em escala mínima. Ouro e prata estagnavam, eram entesourados e ocultos com receio dos ataques de piratas, na costa, ou de bandidos, no interior. Outras vezes, os metais eram fundidos e transformados em jóias grosseiras para uso feminino.

Taxas, contratos, arrendamentos, monopólios, pagavam‑se in natura. O processo normal era êste: a administração punha em hasta pública a arrecadação dêsses réditos, e contratava‑se com o lançador mais alto. O concessionário teria de pagar em moeda corrente; mas, êle próprio coletava as somas devidas, em gado, panos, pau‑brasil, açúcar ou cachaça. Vendia no mercado litorâneo as mercadorias recebidas, ou exportava‑as e ainda ganhava na negociação. O jôgo era, como sói por sempre em tais sociedades primitivas, verdadeiro flagelo. Os meios de fazer face aos prejuízos não variavam: terras, escravos, jóias, bezerros e gado, mercadorias, e raramente moeda. Tal situação duraria mais de um século, e só se modificou, em parte, na era de setenta do século XVII.

28. Consciente emancipação política da colônia. — Todos êsses inconvenientes ou particularidades de um tipo especial de vida social tiveram influxo muito fundo, se bem não sentido desde logo, nos problemas internacionais da colônia.

Em primeiro lugar, desenvolveram nos colonos grande confiança em si próprios. Esforçavam‑se por si, sem auxílio da metrópole. Não alimentavam rancor ou despeito, mas só contavam consigo e com seus recursos próprios. El‑rei, em Lisboa, era para o português de além‑mar uma sorte de semideus, de essência divina, temido, respeitado e mesmo amado, como um ser sôbre-humano e distante.

Do monarca dependiam favores e doações, honras e lugares. Mas do govêrno metropolitano, pròpriamente, pouco, ou mesmo nenhum benefício se esperaria.

Uma sensação obscura de igualdade entre as duas frações portuguêsas, a americana e a européia; uma noção apagada de não receber o trato eqüitativo por parte dos governantes do reino; tal impressão de injustiça relativa começou a surgir entre as duas ribas do Atlântico, a separar‑lhes as mentalidades. Tal se desenharia a terra de cultura, onde um século mais tarde iriam abrolhar as sementes de libertade e de independência.

Vieram depois as conseqüências das bandeiras de resgate, meios de execução da caça ao índio. Sem importância na bacia amazonense, desprezada por Espanha, desde 1637 havia sido conquistada para Portugal por Pedro Teixeira. A Sul, porém, as dificuldades acumulavam‑se tanto mais graves quanto mais meridional era o trecho estudado.

O tratado de Tordesilhas ainda vigorava, nominalmente pelo menos, e esta deveria ser a bitola de apreciação.

Na latitude da Bahia, o limite ainda não fôra violado. Em São Vicente, porém, passava o meridiano muito próximo à cidade de São Paulo, e, mais para Sul, ia encontrar a costa pouco abaixo da hoje cidade de Paranaguá.

Antes mesmo do fim do século XVI, as bandeiras haviam penetrado bastante além do traço divisório; estavam preando silvícolas e destruindo reduções jesuíticas, a bem dizer sem estôrvo das autoridades espanholas do Paraguai. Para tal inércia concorriam vários motivos. No domínio dos Filipes em terras lusas, de 1580 a 1640, quer sob título castelhano ou por conquista portuguêsa, o senhorio da terra pertenceria sempre ao soberano de Espanha. Êste, que recebia os recursos e reclamações de autoridades paraguaias e dos jesuítas, não desejava intervir em tais disputas longínquas de obscuras colônias, nas quais não perigava  p39 seu império de todo o continente. Por êsse ou aquêle direito que se invocasse, seria sempre seu.

Mas, depois de 1640, com a Restauração de Portugal o aspecto das coisas havia mudado. Os dois reinos estavam em guerra: Castela fôra vencida e finalmente forçada a aceitar a situação de fato. A conquista do Brasil, por intermédio dos bandeirantes, nunca mais volveria aos antigos donos por direito tordesilhano.

Mais de século e meio durou tal estado de espírito. No fim do século XVII, portanto, o recuo vagaroso, constante, violento e incessante da fronteira para Sul e para Oeste, havia produzido novos frutos. A colônia de Sacramento, fundada em 1680, era uma chaga aberta no lado das possessões platinas, pelos motivos já expostos. Uma divisa correndo ao longo do Paraná ia começando a tornar‑se possibilidade ameaçadora.

O Brasil crescia em área, pela conquista e pela guerra, e nada se fazia para obstar semelhante expansão do poder lusitano.


Anotação de Thayer:

a O texto no meu exemplar lê-se com a duplicação da linha anterior

João Antônio Andreoni; havia sido visitador da província, reitor

e restaurei o texto a partir de uma citação em Simonsen, História econômica do Brasil, 1520‑1800, § 121.


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Página atualizada: 4 Out 13