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Capítulo 2

Esta página reproduz um capítulo de
Formação Histórica do Brasil
de
João Pandiá Calógeras

Companhia Editora Nacional
São Paulo, 1966

O texto é de domínio público,
exceto para meus anotações.

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e la creio livre de erros.
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por favor me avise!

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Capítulo 4

 p40  Capítulo III

Riquezas minerais

Nos últimos anos do século XVII, explodiram sùbitamente em Lisboa as ansiosamente e por tão longo prazo esperadas noticias do descobrimento de fabulosos depósitos de esmeraldas e de ouro no sertão de capitania de São Vicente. Tão ricas, e abundantes as jazidas, que à região se deu desde logo o nome de Minas Gerais.

Era o resultado da longa porfia iniciada cento e sessenta anos antes, desde o primeiro contato dos colonos com a terra, levada a efeito com atividade incessante e com igual insucesso através de dificuldades e obstáculos sem conta.

29. A miragem das minas. — Ponto de partida havia sido um grande mal-entendido entre portuguêses e índios. Viviam êstes em pleno período neolítico, na mais absoluta ignorância dos metais. As fainas a que êstes serviam em povos mais adiantados, aqui se devolviam a instrumentos de pedras polidas, de osso ou mesmo de madeira.

Assim, quando os imigrantes inquiriram dos autóctones se possuíam minas de prata ou ouro, os ignorantes silvícolas não entendiam a pergunta e acreditavam, e respondiam com inteira boa fé, que se tratava de pedras brancas ou amarelas, e, por isso, davam informação afirmativa de que existiam jazidas imensas em tais e tais lugares, a tantos dias de marcha da costa.

Por seu lado, o português, firme em sua compreensão acorde com a mentalidade européia, entendia a resposta como referente a metais. Escreviam e narravam os fatos à metrópole, hipnotizados por essas prometidas riquezas: ouro e prata abundavam,  p41 diziam êles, mais do que em Bilbau o ferro. E assim se formaria a lenda das divícias da colônia.

Hábito dos índios era, em seu natural gôsto pelos adornos, furar lábios, septo nasal e bochechas e introduzir nos furos pedaços de madeira polida ou de pedra, penas ou fragmentos de cristal ou de seixos brilhantes. Tais ornamentos chamavam‑se tembetás. Alguns dêles, vistosos e verdes, pareciam esmeraldas grosseiras, ainda não formadas, argumentavam os pesquisadores, convictos de que as gemas, como os frutos, eram produção natural do solo. Surgiu logo o boato de que o sertão brasileiro regurgitava de minas de esmeraldas, e só isso se ouvia no reino.

Conseqüência lógica, o govêrno deu ordem para que se multiplicassem esforços a fim de locar as zonas onde tais tesouros se poderiam encontrar. Iniciou‑se, nas capitanias, alvoroçado movimento para se descobrirem as minas de que todos falavam, mas que ninguém conhecia.

Saíram muitas levas da cidade do Salvador, a Bahia de hoje, e de outros pontos da costa baiana, sob a orientação de índios; com indubitável boa fé, êstes guiavam os aventureiros para as regiões que êles haviam indicado como as das pedras brancas e amarelas. Verdadeira comédia de erros, em que todos estavam animados da maior sinceridade, mas em que ninguém se entendia.

Chegados aos locais apontados, é claro que o êrro se desfazia após a prova das arreias e dos corridos, que resultavam improfícuos e sem valia. Aí, entretanto, o malôgro gerava a desconfiança, em ambos os grupos, cada qual acusando o outro de o ter propositalmente enganado. Exacerbavam‑se os ânimos, e isso pouco podia contribuir para serenar o azedume das relações recíprocas. Exaltavam‑se cada vez mais os espíritos, e tornavam suspeitas e mesmo inteiramente mal-intencionadas as aparências, quando, de fato, mero mal-entendido reinava entre gentes falando línguas diferentes e pertencentes a estádios sociais muito afastados um do outro.

Uma dessas expedições minerais logrou descobrir um pouco de ouro; na viagem de retôrno, água abaixo do rio Cricaré, emborcou uma canoa e soçobrou nas corredeiras, precisamente a  p42 embarcação em que vinham as preciosas amostras. Alegando o descoberto, não podia ser feita a prova.

Isto desanimou por extenso prazo tôdas as pesquisas na zona baiana. Aí, a febre do metal nobre aquietou‑se por muito tempo.

Quanto as esmeraldas, não estavam os colonos tão longe de acertar. Os tembetás verdes faziam‑se de tudo; podiam ser fragmentos de amazonita, um feldspato dessa côr; uma turmalina verde, na maioria dos casos; mas também acontecia serem berilos ou águas-marinas, ambos pertencentes à família mineral sistemática em que se inclui a esmeralda. Hoje êsses três representantes da série dos silicatos de alumínio e glucínio são perfeitamente conhecidos em Minas Gerais e suas jazidas estão sendo lavradas. Não era, pois, devaneio dos pesquisadores a arrancada para o sertão em busca das pedras verdes.

Mais de uma entrada se fêz sob êsse signo. Falharam tôdas, menos uma. A região onde se realizou, tendo índios por guias, era e ainda é uma das mais perigosas, por sua insalubridade, do Este de Minas: florestas e charnecas e alagados onde reinavam endêmicamente as mais terríveis variedades de sezões, a dizimarem as vidas. Os decifradores do enigma geográfico e econômico trouxeram de sua feliz exploração umas quantas turmalinas inferiores, que não suscitaram entusiasmos nas autoridades; diziam estas que as pedras haviam sido colhidas na superfície, e estavam requeimadas e calcinadas pelo calor solar.

Contradição interessante: nessa mesma zona, ouro e pseudo-esmeraldas, assim como legítimas gemas, existiam e foram mais adiante achadas e exploradas. Deu‑se, entretanto, como perdido êsse esfôrço preliminar, por causa do insucesso das numerosas bandeiras pesquisadoras.

Aferravam‑se com a maior insistência, contudo, a outra série de investigações: a prata, que, até hoje, nunca foi encontrada em seus minérios, mas só se tem revelado como acessório dos minérios de chumbo, as galenas argentíferas.

Não há que admirar. Como poderiam êsses improvisados mineiros saber? Em Portugal, tal experiência não se poderia obter. Os moradores do Brasil não tinham visitado Potosi ou  p43 quaisquer outras minas peruanas. Não possuíam dados geológicos que os guiassem na busca de estratos, viveiros ou depósitos de qualquer qualidade. Deixavam‑se iludir pelo aspecto externo e sinais adventícios: todo mineral brilhante era tido por prata. Mesmo em dias nossos, a gente ignorante labora no mesmo engano; como estranhar que, naquelas eras remotas, caissem no mesmo êrro exploradores rudes e ainda mais desconhecedores dos fatos naturais? Qualquer mica, outro mineral faiscante ludibriava aquelas inteligências ingênuas como se prata fôsse.

Prestígio persistente do Potosi e de suas riquezas, ou conseqüências de persuasão errônea derivada do facies das rochas, certo é, contudo, que, apesar de malograrem as tentativas e de se provar mais tarde a inexistência do metal branco, a opinião nunca variou, nem admitiu que as minas não existissem ou fôssem escassas em seu teor. Até fins do século XVII, perduraram as indagações e fizeram dêsse ciclo de tentativas um dos capítulos mais interessantes de nossa história colonial. Sem nos ser possível sumaría‑lo aqui, é lícito afirmar que dêsse êrro derivaram conseqüências políticas e geográficas da mais alta relevância.

Um dos espíritos mais sinceramente convictos da existência de minas de prata era um rico colono da Bahia, Gabriel Soares de Sousa. Para justificar sua pretensão de obter de Filipe de Espanha uma concessão régia, escreveu em 1587 um livro admirável com a história geral e a descrição do país — Tratado descritivo do Brasil — uma das mais notáveis obras literárias da mentalidade portuguêsa no século XVI.

As esperanças, todavia, minguaram e desvaneceram, quanto ao achamento de gemas e de ouro na Região Norte da costa. As últimas centelhas de confiança concentravam‑se agora no trecho ao Sul. Chegavam a provocar a divisão da colônia em dois governos. D. Francisco de Sousa, que já pesquisara minas durante sua primeira missão como governador-geral do Brasil e então auxiliara Gabriel Soares em suas malogradas explorações, voltou para governador das capitanias sulinas. Tratou de fomentar a fundação de pequenas forjas de produção direta de ferro segundo o método catalão. Em derredor de São Paulo, algum ouro foi achado: as jazidas, pobres e de difícil lavrança, ainda não  p44 foram sèriamente objeto de trabalho aturado. Naqueles tempos, porém, areias e cascalhos foram sendo lavados na bateia, tanto nas cercanias de São Paulo como em outras aluviões do hoje Estado do Paraná, em Paranaguá e em Curitiba.

Mínima era a produção, mas lograva impedir que morresse o último lampejo de fé em que se realizasse a velha crendice de que o Este era superior ao Oeste, e que, portanto, o Brasil, mais oriental do que o Peru, conteria riqueza maiores do que êste.

Tão poderosa se manifestava esta convicção, que o rei D. Pedro II de Portugal se decidiu a solver a interrogação. Naquelas épocas uma carta de el‑rei era coisa tão rara, que os súditos a quem eram endereçadas as legavam a seus herdeiros como preciosidade sem preço, extraordinária e quase sôbre-humana. D. Pedro estava a par dêsse conceito. Em 1674, enviou missivas do próprio punho aos maiores paulistas, entre os quais se encontravam os mais audazes bandeirantes e sertanistas, exortando‑os a empreender a tarefa de achar a solução dêsse problema essencial à fortuna pública do reino, o descobrimento de ouro e de gemas.

30. A vitória de Fernão Dias Pais Leme. — Passados anos de peregrinações em Minas Gerais, as esmeraldas foram novamente localizadas, em 1681, por um dêsses mais ilustres chefes de bandeira, Fernão Dias Pais Leme. Em realidade, eram berilos, águas-marinhas e turmalinas, como classificação científica; verdadeiras esmeraldas só há poucos anos se revelaram. Mas as gemas semipreciosas, mesmo de valor menos elevado, ainda ofereciam bons resultados. Fernão Dias, entretanto, morreu de esfôrço e de sofrimentos curtidos no sertão, sacrifícios e pelejas que, em sua idade, já não poderia suportar.

Pouco depois, em 1698‑99, foram manifestadas as primeiras jazidas auríferas realmente importantes, que se abriram às margens do rio das Velhas, um dos afluentes da margem direita do São Francisco. A partir dêsse momento, ano após ano, mês após mês novos depósitos se foram descobrindo, de riqueza fabulosa, sempre em Minas.

Novas entradas, estimuladas por êsses sucessos, se iniciaram em outras zonas. Em 1719, os cascalhos de Mato Grosso começaram  p45 a ostentar suas divícias. Seis anos mais tarde, em 1725, veio o turno de Goiás, e, finalmente, pela mesma época, Bahia deu a conhecer seus tesouros: aqui, talvez, foram um pouco mais cedo os achados.

Os acontecimentos, quer bons, quer adversos, nunca vêm sòzinhos. Em 1729, em outro trecho de Minas, descobriram‑se diamantes.

Fácil é compreender a revolução econômica que surgiu de tais fatos, tanto na metrópole como na colônia. Fluía um Pactolo pelos domínios bragantinos.

O govêrno de Portugal era verdadeiramente lamentável. O monarca, D. João V, de nada cuidava senão de se divertir e ostentar sua fortuna. Quase nada ficaria, merecedor de nota, dos milhões remetidos pela capitania do ouro: algumas construções muito discutidas, a criação do patriarcado de Lisboa, tesouros gastos em pura perda com favoritos de ambos os sexos.

Mental e polìticamente, o reinado fôra um desastre, pois ninguém se preocupava de coisas sérias. El‑rei tinha conselheiros de nível igual ao seu próprio. E, ironia feroz, por essa mesma época viviam dois dos mais eminentes diplomatas do reino, Luís da Cunha e Alexandre de Gusmão, um dos irmãos de uma tríade ilustre de santistas, dos quais outro era o Padre Voador, Bartolomeu de Gusmão, o inventor da Passarola, e o terceiro o ouvidor de Mato Grosso, Teotônio de Gusmão, cujo nome ainda relembra hoje uma das corredeiras do Madeira. De que valiam tantos talentos, entretanto, se o soberano nem lia papéis, nem ouvia pareceres ou relatórios sôbre as questões mais relevantes de política, quer externa, quer interna?

Seu sucessor, D. José I, tinha valor maior. Estudava os problemas de govêrno, e escolhera conselheiros idôneos. Um dêles, o mais brilhante, era o famoso Marquês de Pombal, Sebastião José de Carvalho e Melo, enérgico senhor de uma vontade férrea, mas presumido e alardeando conhecimentos que estava longe de possuir. Em seu espírito a desconfiança era uma doença mental; vindicativo, sua crueldade era apavorante. Ainda assim, governava, e a administração portuguêsa deixou de ser, sob sua direção, a nulidade que revelara no decurso do reinado precedente.

 p46  31. A invasão das Minas Gerais. Os diamantes. — Na colônia, tomaram as coisas feição diferente.

A primeira conseqüência da descobrimento fôra a invasão das minas de ouro, invasão tremenda que durou principalmente de 1699 a 1711 e continuou depois em escala atenuada. Para bem se poder compreender a significação do fenômeno, cumpre lembrar que a região era totalmente ignorada; nada havia pará receber a onda dos imigrantes, e êstes chegavam aos milhares, vindos de tôda parte, do Brasil, como do reino. Fome, sofrimentos inenarráveis, epidemias, assaltaram os mineradores de ouro e dizimaram suas fileiras.

Antonil, em seu preciosíssimo livro, dá números aterradores sôbre preços, de vinte e cinco a cinqüenta vêzes os normais. Dez anos decorreram para sanar tais dificuldades: o remédio veio da abertura de chamadas estradas, antes rudes trilhos para muares e pedestres, através das serranias, e que só se mostravam menos ásperos entre as jazidas auríferas e Rio de Janeiro e Bahia. Por esta última vieram os gados das fazendas de criação do vale do São Francisco, de sua margem oriental baiana. Do litoral remetiam‑se escravos e algumas poucas comodidades, supridas pelo Rio principalmente.

Tal situação era geral, em cada nôvo descoberto. Os cascalhos de Mato Grosso foram sede de uma crise de fome durante os primeiros anos de sua ocupação: miséria, calamidades, fome, só começaram a ser suavizadas quando as comunicações apesar de perigosíssimas, se puderam organizar através da rêde fluvial dos afluentes do Amazonas e mais tarde pelo áspero caminho por Goiás e Paracatu.

As jazidas mais ricas e acessíveis estavam localizadas em Minas Gerais, que, pouco após o descobrimento, foi erigida em capitania independente. Nova invasão ocorreu, ao serem manifestados os primeiros diamantes. Corolário normal, esta província tornou‑se um condensador de população.

A riquíssima pedra preciosa foram achada em 1723, sem que se lhe atribuísse importância, pois só em 1729 foi reconhecida. Logo em seguida, provocou o afluxo de gente à região diamantífera, muitos milhares de garimpeiros; em 1736, calculava‑se em  p47 40 000 o número dêles, em zona onde, dantes, mal se achariam umas centenas. Até hoje, as conseqüências se fazem sentir, e Minas ainda é a mais habitada das províncias brasileiras. O rush do século XVIII e do seguinte estabilizou‑se, constituíram‑se famílias e fixou‑se a população.

Outros acontecimentos capitais derivaram da exploração mineira. De todos os pontos do continente chegavam aventureiros e elementos mais estáveis. As capitanias agrícolas despovoavam‑se, embevecidos seus moradores pela fascinação do ouro e da gema. Índios eram maus mineradores, e escravos negros tornavam‑se uma imprescindível necessidade; por isso se procuravam êstes por tôda parte, e africanos se pagavam por qualquer preço.

As colônias portuguêsas da África não poderiam atender à procura crescente, pois os navios escasseavam fretados para a costa norte do Brasil. Plantadores da Bahia e de Pernambuco, seduzidos pelos preços oferecidos, vendiam sua escravaria, e, por vêzes, êles próprios seguiam para o Sul, a fim de tentarem fortuna no garimpo e nas minas. Desorganizou‑se a cultura das terras, e era isso ameaçador prenúncio, pois poderia valer por um sintoma precursor de nova crise de gêneros alimentícios.

Em vão, ordenavam os governos locais, aos capitães-generais, se fechassem as estradas e se enviassem patrulhas em perseguição dos fugitivos, ou impunham taxas e multas sôbre tais emigrações. Nada conseguiam as medidas repressivas. As cintilações do ouro e do diamante provocavam tentação irresistível.

Com o fito de evitar concorrência industrial que desviasse da mineração qualquer braço, ordenou Lisboa fôsse fechada qualquer fábrica ou estabelecimento das capitanias mineiras. Engenhos, fazendas de tabaco e semelhantes foram proibidos. Assim se originou o grave perigo de tudo fazer depender do metal nobre e das gemas, esquecidos os governos de que, se a faina mineradora viesse a sofrer crise, seria a ruína da colônia.

A repressão de contrabando e do descaminho era severíssima, assim como da ocultação do ouro. Ineficaz, entretanto, e a fraude acêrca dêsses males era feição corrente, como reação normal do indivíduo contra a exação fiscal. Nascia daí sentimento compreensível de má vontade contra govêrno e autoridades, que prestigiavam a lei imposta pela metrópole.

 p48  Inverteram‑se as distribuições anteriores de riqueza, réditos, populações importância e prestígio. Em primeira fila, dominadores e indiscutidos, vinham ouro e diamante.

Em Portugal, ficaria prestigiado o poderio régio. Quando, em eras outras, a coroa precisava de recursos, tinham suas necessidades de ser expostas às Côrtes, que poderiam conceder ou recusar o pedido, o que colocava o soberano na posição de um postulante, com prejuízo de seu prestígio e de sua autoridade. As últimas foram de 1697, precisamente antes de se divulgarem os novos tesouros descobertos no Brasil. Com os quintos, não mais precisaria o monarca convocar Côrtes, evitando assim suas críticas e reclamações sôbre exigências administrativas. As taxas ultramarinas pagariam tôdas as novas despesas, pois o ouro teria de solver 20% de seu valor, e o diamante era monopólio régio.

Tudo somado eram receitas formidáveis para o tempo. Embora impossível de ser avaliada com exatidão, a produção de ouro, inclusive o descaminho, deveria ter sido aproximadamente em arrôbas de 15 quilogramas:

Anos Minas Gerais Goiás
Mato Grosso
São Paulo
Bahia-Ceará
1700‑1725 7 500 arr.
1725‑1735 6 500  
1736‑1751 12 000  
1752‑1787 18 000  
1788‑1801 3 500  
1720‑1801 13 000 arr. 15 000 arr.

Total

47 500 arr. 13 000 arr. 15 000 arr.

Como grande total, achamos 65 500 arrôbas ou 983 000 quilogramas, cêrca de seiscentos milhões de contos de réis em moeda norte-americana de hoje ou perto de cinco milhões de contos de réis em moeda corrente brasileira de nossos dias.

Tais cômputos vão até 1801. Dessa data por diante, ainda podemos tranqüilamente acrescentar mais umas 400 toneladas métricas de ouro, o que eleva o total precedente a 1 400 toneladas, ou oitocentos e quarenta milhões de dólares, sejam mais de sete milhões de contos de réis.

 p49  Em princípios do século XIX, diz Von Eschwege, 555 minas estavam sendo lavradas, com 6 662 trabalhadores, dos quais só 169 eram livres e 6 493 escravos. Além disso 3 876 mineiros livres, faiscadores, lavavam areias auríferas. Um total de 12 309 pessoas ocupadas nessa indústria extrativa. Não existiam companhias nem associações para êsse fim, em 1814.

Os diamantes, também, davam largas receitas.

Não é possível reproduzir estatísticas fidedignas. Mesmo os algarismos oficiais, derivados dos contratos ou da administração direta das jazidas, só se podem acreditar no que se refere a sua própria atividade. Mas o diamante é tão fácil de ocultar; os escravos tanta habilidade possuíam para os empalmarem e esconderem entre os dedos do pé, na carapinha, na axila, nas dobras da escassa roupa com que cobriam sua nudez, nas rugas do próprio corpo, ou pela deglutição, que era corrente e inevitável, apesar de todos os meios de fiscalização, serem desviadas de seu destino legal numerosas pedras. O contrabando delas era importantíssimo.

Certo lapso havia decorrido, além disso, antes de terem sido reconhecidas as gemas, e apenas a partir de 1740 se esboçara uma administração regular da extração. Para tal período, não há estimativa possível.

Métodos e modos de minerar, explorar e vender, sofreram numerosas mudanças. Nunca se extinguiu o garimpo ou o contrabando. É realmente um capítulo de aventura, coragem e dor, êsse da luta da administração diamantina e dos defraudadores desta. Alguns dêstes heróis do descaminho até hoje são lembrados no antigo Distrito Diamantino, e sua memória é respeitada. Isidoro, o mais célebre dêles, morreu de torturas e sofrimentos, prisioneiro, e sem revelar o segrêdo das lavras ricas onde costumava garimpar.

Os documentos oficiais relativos a extração dão os números seguintes:

Período dos contratos (1740‑1771) 1 666 569 quilates
Real Extração (1772‑1828) 1 319 192 quilates

Total

2 985 761 quilates

 p50  No período colonial, além de Minas, Bahia também havia fornecido diamantes; aí, entretanto, o govêrno mandara fechar as minas. Delas se perdera a memória, até que, em 1822, Spix e Martius tornaram a achar as jazidas do Sincorá. Em curto prazo, tôda a Chapada Diamantina revelou suas prodigiosas riquezas em gemas: novos placers foram encontrados.

De Mato Grosso e Goiás sabia‑se que alguns rios era diamantíferos. Minas, do mesmo modo, mostrou possuir novos descobertos além dos já tradicionais. Por várias zonas em São Paulo e no Paraná, entre outras, pequenas manchas se foram manifestando com escassa capacidade de produzir pedras preciosas.

Hoje em dia, os centros principais são Minas, Bahia e Mato Grosso, divulgando largas possibilidades futuras nesse ramo de indústria mineira. Não nos afastemos, entretanto, de nosso escopo, e deixemos de lado as perspectivas econômicas.

Até o fim do século XVIII, e o comêço do seguinte, Minas forneceu quase três milhões de quilates, ou cêrca de 615 quilogramas, diz Wappaeus, entre pedras legalmente extraídas e as do garimpo escuso. Tal cômputo abrange os algarismos até 1832, ano da extinção da Real Extração, e da liberdade de minerar diamante.

Para dar idéia das potencialidades dessa mineração, acrescentemos estatísticas de 1832 até hoje. Calcula‑se que haja crescido o pêso total da extração a 4 000 quilos, ou 3 400 acima do total de 1832. Carbonados, em grande cópia, têm sido exportados pela Bahia.

Tais produções, contudo, são recentes. Nos tempos coloniais, só Minas contava para o diamante. A capitania, é claro, cresceu sob todos os pontos de vista, e tornou‑se a mais povoada do Brasil. Governada, embora, com mão de ferro e sob o império de leis severíssimas, seu progresso mostrava‑se rápido, e a expansão alcançava todos os rumos. As conseqüências naturais de tal crescimento abrangiam todos os aspectos da vida, luxo, delicadeza, exigências intelectuais, nível da existência mais alto. Aumentava a população e desenvolvia‑se a riqueza.

32. Desbravamento da vida colonial. — Tornava‑se o viver menos rude do que nas zonas puramente agrícolas do país. As  p51 cidades viam subir o número de seus habitantes a cifras desconhecidas no litoral. Tijuco e Vila Rica (os antigos nomes de Diamantina e de Ouro Prêto) eram as duas capitais, a primeira na região das pedras preciosas, e a segunda na do ouro. Com o fito de dar uma noção da condensação artificial devida à atividade mineradora, e mostrar como é precária e flutua com a riqueza da extração, digamos que Vila Rica chegou a ter, segundo velhos cronistas, 100 000 habitantes enquanto hoje, mal contará 8 000. Do Tijuco dizia‑se ter 40 000 almas, meado o século XVIII: nova prova dessa evolução regressiva, hoje contará talvez um quinto dêsse total. Transformaram‑se em cidades fantasmas, assombradas pelas reminiscências de suas passadas grandezas, e vivendo uma vida de saudades e de recordações.

Minas Gerais, naturalmente, assumiu a posição dominante da colônia. Rio de Janeiro era seu pôrto de exportação e o de importação de escravos e de mercadorias ultramarinas. Cresceu na mesma proporção do desenvolvimento das minas. Por tal motivo, tanto quanto por motivos de política internacional, ligados à defensão da fronteira sulina, em 1763 foi promovida a capital do vice‑reino.

33. Avaliações demográficas. — Não há estatísticas fidedignas de tais épocas. A tentativa de 1819 ainda é a que se pode citar como esbôço demográfico. Os algarismos apresentam certo vulo, e para referir ao comêço do século, um coeficiente corretivo deveria ser aplicado. Mas as proporções mantêm‑se mais ou menos inalteradas.

Fôra uns 800 000 indigenas, era calculada a população do Brasil em 3 596 132 almas. Na primeira linha, Minas com 463 342 pessoas livres, e 168 543 escravos, 631 885 habitantes ao todo; a proporção de escravos era de 26,9%. Vinha em seguida o Rio de Janeiro com 510 000 moradores, inclusive 23,4% de cativos. O terceiro lugar e o quarto pertenciam respectivamente à Bahia, com 477 912 cabeças, compreendendo 30,8% de negros, e a Pernambuco, com 371 465 habitantes dos quais 26,3% eram de condição servil.

Nessa data, a percentagem pigmentar variara de 66,6% de sangue africano, no Maranhão, a 12,8% no Rio Grande do Norte.  p52 A primeira razão decorria das largas importações de cativos conseqüente ao desenvolvimento da cultura do algodão naquela província. Outra percentagem muito elevada, de 42,5%, era oferecida por Goiás, onde as minas de ouro haviam provocado larga importação de gente escura. Em média, os escravos eram 1 107 389, em uma população de 3 596 132 ou 31,0% do total.

34. A siderurgia. — Como já dissemos, os negros trouxeram a metalurgia do ferro às regiões onde os minérios abundavam. Em Minas Gerais começou desde logo o preparo do metal.

O processo africano de elaboração direta do ferro, o método dos cadinhos, disseminou‑se pelo distrito aurífero. A procura seria grande para as exigências dos trabalhos das jazidas. Além disso, a agricultura era outra fonte de consumo de metal, assim como as construções correntes. Minas, além do mais, é montanhosa, cheia de pedras e de alcantis seus caminhos; os transportes exigem cargueiros e cavalos, bem como carros de bois. Todos êsses animais têm de ser ferrados, o que gasta largas quantitades de material. Aqui não se podia usar o sistema comumente empregado no Norte, de chuvas mais raras, menos abundantes e de solo menos pedregoso: deixar os animais desferrados endurecendo‑lhes os cascos com sebo quente. O Brasil central é por demais úmido, e as estradas molhadas e cobertas de lama não dão firmeza ao pisar dos quadrúpedes. Aos carros de bois acontece o mesmo, e as rodas têm de possuir aros de ferro.

35. O ambiente das Minas Gerais. — A princípio as minas eram o que são em tôda parte. Lei e justiça eram valôres incógnitos. Dominavam, apenas, a vontade do mais forte, do mais audacioso, do mais destituído de escrúpulos. A situação da Califórnia nos dias de 49, com a diferença para pior que os mineiros daqueles tempos mais recuados eram ainda mais broncos, e violentos e rudes do que os do século XIX. Durante dez anos, a ocupação territorial das jazidas foi caracterizada por tumultos sem fim, rixas incessantes e homicídios como única forma de justiça.

Guerras intérminas e organizadas surgiram entre primeiros ocupantes, recém-vindos aventureiros e faiscadores inexpertos. Os mais antigos em data de presença nas minas elegeram para  p53 chefe um reinol respeitável, rico fazendeiro e proprietário de grandes rebanhos em fazendas à margem do São Francisco. Êste homem, escolhido para dirigir a turba de facínoras e de desordeiros, produto de espontânea seleção, pôde manter relativa ordem nas minas e cobrar réditos legais.

Figura estranha nesses remotos sertões, Manuel Nunes Viana não era um cabecilha nem um revoltado a ostentar arbítrio e fôrça. Lia Santo Agostinho, na De Civitate Dei, e obras outras de igual quilate; a expensas próprias, editou um dos livros mais espalhados de época, O Peregrino da América, de Nuno Marques Pereira, conforme averiguou Capistrano de Abreu.

Parece ter aceito sua aclamação revolucionária com o fito de pôr côbro à desordem e permitir se atenuassem ódios e paixões, até o advento de um espírito nôvo de calma e de relativa tolerância. Fato inconteste, quando o governador legal de Minas chegou, em 1711, trazendo consigo apenas quatorze pessoas, comitiva ridícula se se tratasse de expugnar um govêrno intruso resolvido a manter‑se pela fôrça, Nunes Viana entregou o poder sem a menor relutância nem a aparência de oposição, e, pacificado o país, voltou a viver em suas fazendas de gado do São Francisco.

O grande vexame para os mineradores eram as taxas e fintas. Nem só por sua exorbitância, como pelo processo irritante de sua cobrança. Existia geral animadversão contra o govêrno, e seus funcionários, pelo modo vexatório de suas usanças fiscais. Como regra, entretanto, os contribuintes, queixando‑se embora e murmurando, não iam além dos protestos, e isso mesmo proferidos onde não pudessem ser ouvidos e levados ao conhecimento das autoridades, suspicazes e vingativas. A delação dominava, como se sabe, nos processos governativos da época. Quando muito, algum tumulto local traduziria a íntima revolta e o desespêro da vítima da exação mais clamorosa. A ordem logo se restabelecia, e nunca perigou sèriamente a obediência ao poder legal.

Exceção única, 1720 ostenta um levante em Vila Rica, na capital da capitania, chefiado por Filipe dos Santos e Pascoal da Silva Guimarães. Poucos dias durou, esmagado que foi logo pelo capitão-general Conde de Assumar, e justiçado seu cabeça.  p54 Quis e ainda tenta o romantismo histório fazer de Filipe um precursor de patriotismo brasileiro e republicano. Não resiste tal devaneio ao fato material de ser o herói muito bom reinol. O sangrento episódio de seu esquartejamento em Vila Rica não é sinal o desfecho legal da penalidade imposta pela lei vigente aos réus de lesa-majestade, segundo a psicologia cruel da época. Setenta anos decorreram desde então, sem o menor empecilho ao arbítrio dos capitães-generais. Protestos, queixas, grita, timidamente faziam‑se ouvir; nunca apêlo à revolta armada nem à fôrça material.

No Distrito Diamantino, pior ainda era a situação. Aqui as regras eram draconianas, e sob seu jugo tôda a população tremia diante da terrível prepotência do Intendente dos diamantes. Ninguém, entretanto, se atrevia a protestar, tão discricionário e cheio de arbítrio era o poder dêsse funcionário, e tais a crueldade e severidade das penas cominadas no famoso Livro da capa verde, o código penal e administrativo do Distrito.

36. A Inconfidência. — Tôda a capitania vergava e era esmagada sob a dureza do govêrno. Má vontade, indignação mal velada, ódio, reinavam sem peias por todo seu território. Tanto que um grupo de funcionários da mais alta situação e de gente preeminente no meio social e no da fortuna, começou a murmurar e formular o sonho de pôr fim a semelhante tirania.

Curioso é notar que a independência norte-americana não foi estranha a tais conversas. Alguns estudantes de Minas seguiam os cursos da Universidade de Montpellier, em França, por 1776. Entre êles, José Joaquim da Maia tomou‑se de entusiasmo pela emancipação dos Estados Unidos, e animou‑se a escrever ao ministro da nova unidade política em Paris, Thomas Jefferson, sôbre a possibilidade de serem os mineiros auxiliados por Washington, caso tentassem movimento libertador igual. A resposta do diplomata foi, como não podia deixar de ser, ambígua e vaga. Maia morreu antes de voltar ao Brasil, mas seus companheiros de estudo conheciam o fato e o referiram confidencialmente a seus amigos, quando voltaram à capitania, e acharam auditório simpático à idéia.

O ambiente em que tais cogitações encontravam eco, tinha por espíritos diretores principalmente sacerdotes, de instrução  p55 regular. Na lista de livros da biblioteca confiscada de um dêles, lêem‑se numerosos filósofos franceses.

À denúncia feita por um dos conspiradores, interessado em se fazer perdoar a dívida que tinha para com a fazenda pública, seguiu‑se a devassa. Do processo decorreram penas numerosas; várias foram as condenações à morte, tôdas, menos uma, comutadas ao degrêdo na África. Um único dos réus sofreu execução e morreu na fôrça, sendo‑lhe em seguida esquartejado o corpo, para escarmento de futuros sequazes. Recaiu a lúgubre exceção em Joaquim José da Silva Xavier, que, de sua profissão adventicia de dentista, tirou a alcunha de Tiradentes. Não era, por certo, o conjurado de mais alta significação, quer na hierarquía, quer na influência. Era, entretanto, um entusiasta, republicano, alma nobilíssima, de dedicação ilimitada a seu ideal e a seus amigos, apóstolo humilde mas convencido de um credo de libertade e de independência. Por sua posição oficial de alferes da fôrça paga da capitania, viajava bastante pelo território desta, a sua incumbências o levavam por vêzes ao Rio. Levava consigo sempre um exemplar da Constituição norte-americana; mostrava‑o indiscretamente a todos os interlocutores, e pregava sem cessar a necessidade de derrubar o jugo metropolitano, duro e rapace.

Formou‑se a conjura com pessoal de escol de Minas Gerais. Era excessivo, contudo, o número de sabedores da Inconfidência. Tiradentes, exaltado e incapaz de conter seu entusiasmo, falava sem refletir em que ouvidos caíam suas prédicas e esperanças manifestadas. Admira, até, que se não divulgasse o movimento projetado antes da época em que foi. Tais atos de fôrça podem triunfar, mas para isso são necessarias organização e surprêsa: esta não se poderia manter, tal a loquacidade do oficial. Talvez prove a popularidade do plano, êsse mesmo fato da longa demora em que chegassem as notícias ao govêrno da capitania, exercido pelo Visconde de Barbacena.

Um dos motivos alegados para o levante, o que realmente o tornava simpático à população, era a anunciada derrama para reaver o Erário Régio quintos em atraso. Tratava‑se de somas elevadas. Entre os devedores remissos, e de insolvência notória, assim como entre reinóis interessados se acharam os denunciantes,  p56 os coronéis Joaquim Silvério dos Réis, Basílio de Brito Malheiros e Inácio Pamplona.

Avisado, o governador e capitão-general logo tomou as precauções indispensáveis para fazer fracassar a conspiração: suspendeu as ordens relativas a derrama, e mandou prender os denunciados. Durou o processo cêrca de dois anos.

Tiradentes foi o único a sofrer a pena capital em 21 de abril de 1792. Com essa execução, tencionava‑se dar um grande e terrível exemplo aos vassalos insubmissos ou ingratos que sonhassem mudar a ordem estabelecida, e a vítima escolhida foi o chefe moral da Inconfidência. Ficou, realmente, perduradoura a lição, não no sentido colimado por Portugal, entretanto, no de intimidar os colonos.

A admirável conduta superior de Tiradentes durante o processo, calma, nobre, desprendida, chamando a si tôdas as responsabilidades, procurando salvar a seus companheiros de rebeldia pela atenuação da parte que nesta havia tido, tal preeminência moral o sagrava como verdadeiro chefe, condutor de homens, a mola essencial de tôda a conjura. Aos contemporâneos como aos pósteros, apareceria unânimemente aclamado como cabeça de nobre tentame, enquanto a serenidade de sua conduta e seu amor fraterno e cristão aos seus colegas de desventura o apontavam como mártir, a querer atrair sôbre si, para por todos expiar, todo o pêso da vingança e da sanção da lei penal.

Reminiscência imperecível encorajou a oposição corajosa a tôdas as tiranias e ao despotismo português. Desfez aos poucos, mas firme e inexoràvelmente, os laços de prisão entre metrópole e colônia.

Quando rompeu a revolução da Independência, em 1821‑1822, uma das dificuldades mais graves encontradas pelos patriotas para dissuadir a oposição de Minas foi precisamente a fórmula monárquica preferida, pois a lembrança do mártir lhes inspirava por mais convenientes a receita extrema do obscuro oficial justiçado: romper todos os liames com Portugal, mas abolir também o princípio dinástico.

Antes mesmo de nascer, a Inconfidência tinha morrido. Resumira‑se em planos, projetos e conferências vagas. Nada fôra feito para a transformar em realidade. Sua importância, entretanto,  p57 manifestou‑se com o decorrer do tempo, não em execução, mas como sintoma. Dera a medida da opinião pública, índice da hostilidade generalizada contra a administração lusitana e seus métodos. Nela, despontava a Independência.

37. O sentir geral da colônia. — A situação sentimental das demais capitanias coincidia com a de Minas Gerais. Não haviam sido atingidas pela atividade conspiradora do Tiradentes, e assim não conheceram nem sofreram os sobressaltos da devassa, como se deu em Minas e Rio de Janeiro.

O progresso geral do Brasil era um fato, mesmo além da mineração produtora de tesouros, e dêsse surto participava tôda a colônia. Nas zonas de ouro e do diamante, por 1765 se iniciou a decadência das jazidas de metal, e nos últimos dez anos do século XVIII a da extração das gemas. Fora dêsse âmbito, estuava a vida e se sentia o impulso progressivo imanente da terra. Exportações e importações cresciam sem parar. Em 1796, 1800 e 1806, foram as primeiras respectivamente de 11 600 contos, de 12 600 e de 14 200, na antiga moeda portuguêsa. Nas mesmas datas, as importações tinham variado de 7 000 contos a 15 800 e a 8 500.

O longo conflito anglo-francês, a princípio contra a Revolução, e depois contra Napoleão, estava enriquecendo o Brasil. O predomínio marítimo estava sem vacilações em mãos inglêsas. As frotas de Portugal, tanto a de guerra como a comercial, cumpriam seu dever de aliado, o mais antigo da Grã-Bretanha: velejavam sem empecilhos pelo Atlântico, feito um lago britânico. Mercadorias eram transportadas da América portuguêsa para Lisboa. Por muito tempo, as taxas cambiais pairaram muito elevadas, acimo do par, em favor do Brasil como conseqüência do excesso das exportações.

Nos antigos colonos dominava o sentimento de crescimento incompressível. Já sabiam que se achavam no mesmo nível de sua antiga metrópole. Sabiam, igualmente, que Portugal receava um movimento separatista por parte da colônia. E, de todos os lados, vinham confirmações de tão estranho fenômeno.

Importantíssimo, como sintoma, era o fato da crescente intervenção de brasileiros nos conselhos governativos de Lisboa, e na direção dos negócios internacionais do reino.

 p58  Fôra seu início a expulsão dos holandeses de sua antiga conquista na costa do Nordeste. Essa tinha sido uma guerra nacional, empreendida e vencida pelo Brasil, quase desajudado pela metrópole. Enquanto, na Europa, traindo interêsses brasileiros, D. João IV e seus conselheiros faziam o que podiam para pagar a paz aos neerlandeses, e ainda resgatar as vitórias dos pernambucanos, além de compensar as perdas infligidas ao inimigo invasor pelos colonos rebelados, no apavorado temor do que poderia acontecer por parte do flamengo odiado e desbaratado, os habitantes do Brasil haviam combatido, derramado seu sangue, sofrido e morrido, e expulso os forasteiros, execrados como adversários do país e desprezados como hereges da fé católica.

A capitulação do Recife impusera as condições de paz, acorde com a vontade dos colonos: incondicional, concedendo vida e transporte de repatriação para a Holanda, e mais nada.

Nunca mais, na América do Sul, guerras se moveram sem o predomínio de fôrças brasileiras. E tal período de lutas pode‑se dizer que durou mais de cem anos.

A paz foi finalmente assinada com a Holanda, em 1661. Mas com a Espanha, o conflito armado prosseguiu, a partir da Restauração portuguêsa de 1640. De nosso lado do Atlântico provou impossível impedir as conquistas lusas sôbre as colônias castelhanas. Sòmente em 1668 chegou a oportunidade de acordar têrmos de paz entre as duas coroas: a Espanha saía da guerra inteiramente vencida e confessava a derrota pela aceitação de tôdas as pretensões portuguêsas.

Vinha confirmada a conquista do Amazonas. Nisto viam os colonos a prova de seus esforços vitoriosos por engrandecer o Brasil. Seu poderio sôbre o continente crescia cada vez mais: o rei D. Carlos II estava moribundo, e Espanha não cuidava, por julgá‑lo imprudente, de penetrar em competições coloniais em monte tão obscuro da política internacional, ante o enigma da sucessão da coroa prestes a se abrir. A ocupação portuguêsa, ou antes brasileira, dos territórios assim adquiridos, tornava‑se cada vez mais definida e sólida no vale amazonense.

Tropas francesas enviadas para conquistar o Amapá e a Guiana brasileira foram vencidas e rechaçadas por fôrças saídas do Pará.

 p59  Ao Sul, as bandeiras progrediam para Oeste, até o rio Paraguai. Afluíam invasores até as margens da corrente, por causa das jazidas auríferas que ali se havia descoberto. Trabalhavam aí, aí penavam e se defendiam contra os ataques dos indígenas, por êles próprios provocados tanto quanto por incitamento dos colonos castelhanos do Peru e do Paraguai.

Foi tarefa dura e sangrenta. Procuraram, portanto, diminuir os perigos e riscos, principalmente decorrentes da travessia dos rios, nas derrotas que ligavam as novas minas à capitania de São Paulo. Conseguiram melhorar a situação, organizando fortes expedições navais nos próprios caudais, e também nos trechos em terra firme. Assim lograram submeter o gentio mais feroz e de maior combatividade.

Venceram as sucessivas guerras com as tribos, pacificaram a região por onde se estendia a antiga estrada dos rios para São Paulo, abriram novas comunicações pelos afluentes mato-grossenses do Amazonas pelo Madeira e o Xingu, e construíram o caminho terrestre passando por Goiás, Paracatu e Minas Gerais. Só então se sentiram seguros, e puderam manter comércio constante com o Brasil Oriental, do qual lhes vinham recursos de todo o gênero, em homens, gado e dinheiro.

Ainda mas para o Sul, o conflito acêrca da colônia do Sacramento prosseguia, no qual, pelo lado brasil-português, se ostentaram feitos de valor e de heroísmo da maior audácia, dignos da epopéia da Índia dos séculos XVXVI, que enalteceram o nome português, com Gama, Albuquerque e João de Castro. Inúmeras vêzes, perdida e reconquistada, a colônia viu seu status internacional fixado pelos tratados d1750 e de 1778, em virtude do qual ficou sendo castelhana.

O esfôrço principal pesara sôbre o Brasil, que fornecia homens e recursos, não se achando a metrópole em condições de amparar sua possessão ultramarina.

Um sentimento natural de ufania e de confiança em si fazia palpitar os corações dos brasileiros.

A população igualava e já começava a exceder a de Portugal. Haveres e recursos iam da América para Lisboa, para sustentarem a existência nacional e a internacional da metrópole. A energia, tanto moral como física, para sustentar a parte mais  p60 importante da monarquia conjunta, quer em área, quer em população ou em fortuna, se encontraria na colônia e não fora dela, na mãe-pátria. O govêrno local era escola de competência, a servir de indicação para seus detentores no preenchimento de cargos mais elevados na administração metropolitana, nos conselhos do govêrno. Nestes, mesmo, por vêzes iam tomar lugar homens de Estado nascidos na América. Poder e meios de ação encontravam‑se dêste lado do oceano, enquanto honrarias e riquezas se espalhavam sôbre cabeças portuguêsas.

38. Atritos incipientes com a metrópole. — Era o Brasil para sua metrópole como um cofre de fortunas ou uma vaca de leite. Daí, surgiu a semente de um ressentimento fundo e de um descontentamento crescente. Uma concessão se impunha: igualdade absoluta dos portuguêses das duas bandas do Atlântico. O Brasil não mais poderia continuar a ser mero sustentáculo de uma metrópole decadente.

Bem o sentia Lisboa, na compreensão que tinha do caso. Ao iniciar‑se o século XIX, os receios de Portugal eram que o Brasil rompesse os laços de dependência que o prendiam ao reino. Na colônia, entretanto, nunca fôra de secessão o espírito que animava o povo. Queriam, sim, ser nivelados com os filhos da metrópole, igualados no mesmo respeito tributado aos súditos europeus da monarquia.

Tal sentimento tinha tido sua primeira manifestação por ocasião da guerra holandesa, ao invadir o Recife. Havia crescido no rumo de considerar os problemas de um ponto de vista americano. Já os estadistas portuguêses havia compreendido que teriam de se afastar do ângulo de visão puramente peninsular.

Enquanto as discussões sôbre fronteiras entre Lusitânia e Castela tomavam por base a linha de Tordesilhas e os antigos tratados, já um conceito nôvo se firmara no Brasil, sob a pressão do ambiente local: a ocupação efetiva como fundamento do domínio. Era a tradição jurídica de uma situação de fato.

Tanto poder tinha tal opinião, oriundo da pura e invencível necessidade dos acontecimentos anteriores, que, ao fechar‑se a Guerra de Sucessão de Espanha, em Utrecht, uma das feições dominantes dos tratados de 1713, com a França, e de 1715, com a Espanha, foi precisamente o abandono definitivo das fronteiras  p61 consensuais por linhas astronômicas, e a adoção dos princípios antropogeográficos, como era a ocupação efetiva. Assim se procedeu, entretanto, sem fazer ressaltar a importância da mudança, como que em segrêdo, a fugir da luz meridiana.

Ao célebre tratado de Madri, de 1750, estava reservada, entretanto, a glória de justificar as razões políticas e sociais do êxito da doutrina do uti possidetis. Desta feita, o negociador, do lado português, era um dos mais famosos diplomatas da época, o brasileiro Alexandre de Gusmão, filho de Santos.

Nunca mais se abandonou êsse princípio salutar para a apreciação dos fatos. O pacto de Madri foi abrogado em 1761, e, após longos debates, e hesitações sem conta, uma série nova de cláusulas foi acordada em 1777 e 1778, nos atos de Santo Ildefonso: nesses, do mesmo modo que nos precedentes, triunfava também o conceito da ocupação real e efetiva.

Mesmo êsses tratados não duraram. Enquanto estavam sendo objeto de demorada execução na América, a guerra geral oriunda da abolição da monarquia na França pela Revolução talou o continente europeu. Após o tratado de Basiléia, Portugal foi abandonado por seus aliados, passando a ter como adversários aliados a França e a Espanha.

Foi invadido o reino. Em 1807, o regente português, o príncipe D. João, que viria a ser o rei D. João VI, transferiu‑se com tôda a Família Real e a sede do govêrno, para o Rio de Janeiro, onde chegou em 1808. Um de seus primeiros atos foi denunciar todos os tratados existentes entre Lisboa e a Espanha e a França. Desapareceram desta forma todos os compromissos anteriores sôbre limites. Mas o princípio do uti possidetis permanecera intangido desde 1715, como cláusula implícita, a partir de 1750, como expressão de uma política explícita e claramente reivindicada.

Era uma vitória brasileira sôbre velharias já caducas que o tempo eliminara, como incapazes de solverem problemas de domínio ligados ao povoamento de zonas de terras desconhecidas.

Na vida internacional do Brasil, foi invariàvelmente observada tal regra, nem só em casos nos quais ela nos favorecia, como também naqueles em que éramos contrariados em nossas pretensões.


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Página atualizada: 4 Out 13