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Capítulo 7

Esta página reproduz um capítulo de
Formação Histórica do Brasil
de
João Pandiá Calógeras

Companhia Editora Nacional
São Paulo, 1966

O texto é de domínio público,
exceto para meus anotações.

Esta página foi cuidadosamente revisada
e la creio livre de erros.
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por favor me avise!

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Capítulo 9

 p155  Capítulo VIII

Problemas de organização e de trabalho. O tráfico

Para o Brasil era o Parlamento um instituto nôvo, quando, em 1826, se reuniu pela primeira vez. Já expusemos, páginas atrás, qual a categoria de gente que foi escolhida ou eleita para o Senado e para a Câmara. Aqui devemos agora salientar a tarefa notável realizada por êsses representantes do país.

95. Improvisações na obra governativa. Estabelecimento do parlamentarismo. — É realmente digno de menção refletir no fato de como êsses homens, da noite para o dia, legisladores saídos do nada, conseguiram merecer o título de país da pátria. Lograram possuir o cognome justo de fundadores da nacionalidade. O Brasil constitucional, eis sua obra.

Embora cheio de boa vontade e liberal, D. Pedro I era incapaz, pela sua formação anterior, de se mostrar e de agir como monarca constitucional. Desde o início, Executivo e Legislativo entraram em conflito no modo de obedecer à Lei Fundamental. Neste ponto, nunca variou ou cedeu a Assembléia Nacional; e imperador e gabinete tiveram de abandonar seus métodos absolutistas. Começou a luta na primeira sessão de abertura, quando os membros dela exigiram serem tidos e tratados como parcelas de um dos podêres do Estado.

Em seguida, o dever dos ministros de apresentar relatórios ânuos de sua gestão, foi exigido e impôsto a êsses altos funcionários, que, dantes, não pensavam ser obrigatória tal incumbência. A colaboração de ambas as Casas eletivas na ratificação  p156 dos tratados, na qual nunca assentiu o primeiro Império, foi posta em prática legalmente, após a Abdicação. Em 1837, vencida a oposição do regente Feijó, que relutava em obedecer à regras do govêrno parlamentar das maiorias, Bernardo de Vasconcelos forçara o velho e venerando sacerdote a renunciar a seu cargo, e, daí por diante, o parlamentarismo normal entrou na prática, para nunca mais ser desrespeitado.

O mesmo impulso se deu quanto à organização do país. A antiga legislação portuguêsa havia sido provisòriamente adotada pelo Império que ainda não tinha leis próprias. Tal solução, entretanto, só podia ser transitória, pois o Brasil precisava codificar suas leis decorrentes das necessidades intrínsecas da terra e adaptadas a elas. Êsses juristas autodidatas puseram sem demora mãos à obra. Em 1830, o Código Criminal foi promulgado, e dois anos depois, em junho, o Código do Processo Criminal.

Em 1827, duas faculdades de Direito foram fundadas, em São Paulo e em Recife, assim como um observatório astronômico no Rio. Votou‑se a naturalização dos portuguêses que haviam permanecido no Brasil depois da Independência; assim também a lei de responsabilidade ministerial e dos secretários de Estado; em cada distrito, fundar‑se‑iam escolas primárias, e também nas vilas. Organizou‑se a justiça; criou‑se o Supremo Tribunal, e fêz‑se seu regulamento em 1828. O Estatuto orgânico dos Conselhos Provinciais foi pôsto em vigor; instalou‑se o Correio; iniciaram‑se construções públicas e os Conselhos Municipais. Regulou‑se, em 1830, a liberdade de imprensa; no ano seguinte, é a lei da Guarda Nacional; reorganizou‑se o Tesouro. As faculdades de Medicina receberam novas feições em 1832, e foi sancionada nova lei de naturalização melhorando e completando a anterior. Fundou‑se a Dívida Pública e normalizou‑se seu serviço. De 1837 é a nova ordem de batalha do Exército e da mesma data criação de um Fundo de Amortização.

Aos poucos, a administração, a ordem legal, a vida política e constitucional iam sendo reguladas por medidas normais do Legislativo, até o Ato Adicional de 1834 e sua Lei interpretativa de 1840.

96. Situação econômica e financeira. — As perturbações financeiras, decorrentes de gastos excessivos e da errada política  p157 monetária da circulação da moeda de cobre, já anteriormente exposta, produziram, acorde com a lei de Gresham, o êxodo da prata e do ouro em giro. Restavam a circular, as notas e as peças de cobre, depreciadas ambas, o que as taxas do câmbio revelavam. Superabundavam, além do mais, relativamente ao valor da produção. Como conseqüência, crescia o custo da vida, os gastos galgavam níveis altos, e nenhuma expansão podia dar‑se ao comércio e às exportações.

A atividade mineradora ostentava curiosa depressão, quase um colapso. Pensando o govêrno se tratasse de um excesso na taxação, reduziu os ônus de 20% a 5%. Tolerou‑se a circulação local do ouro em pó. Mais tarde, mesmo essa última restrição foi abolida, e o livre uso do metal nobre foi permitido para todos os misteres, inclusive os pagamentos. Nada melhorava o caos tremendo dos meios de troca. E todos sentiam as conseqüências dessa situação: o tráfico, muito intenso nos anos últimos de liberdade de entrada de negros, sob o regime do tratado anglo-brasileiro de 1826, exigia largas somas. Em 1829, um empréstimo desastroso, contraído a 5%, e vendido aos banqueiros a 52%, pesou gravemente sôbre o Tesouro.

O Parlamento procurou descobrir meios de sair dêsse atoleiro, sem o conseguir. As únicas soluções lembradas eram a emissão de papel-moeda, uma nova paridade cambial, ou uma combinação dêsses dois expedientes. Nenhum conhecimento dos fenômenos monetários, nenhuma ciência econômica. A pressão do momento, o desejo de determinar a nova paridade em meio às violentas flutuações do mil‑réis no mercado cambial, levavam à nova lei de circulação de 1833, fixando o par de 42210 pence. Em nada melhorou com ela a valorização da moeda nacional. Nos documentos contemporâneos, vê‑se o desejo de voltar ao regime monetário anterior; sem êxito, porém, pois a teimosia no êrro parece ser uma das características das assembléias humanas. Não se paralisou a queda das cotações.

Crescia a população, entretanto, assim como a produção e o comércio. De 1822‑34 a 1839‑40, as importações haviam crescido de 36 237 contos a 52 358 contos; as exportações de 33 000 contos a 43 192. Tais algarismos promissores traziam a detenção da queda das cotações e conseguiam mantê‑las entre 26 e 31.  p158 Pediam‑se e ofereciam‑se opiniões e inquéritos. Mais tarde seriam aproveitadas as sugestões, na lei de 1846, que fixou a paridade do mil‑réis em 27 pence.

97. Os tratados de comércio. — Um dos maiores óbices à liberdade de taxação residia nos tratados celebrados pelo Império recém-fundado, no período de 1826‑29. Por êles, a liberdade comercial, poder de tributar, licença de orientar uma política econômica havia ficado gravemente feridos. Desde o primeiro momento, o Parlamento os tinha combatido por dois motivos: a violação constitucional pela qual se dispensava pràticamente a cooperação parlamentar no poder de celebrar tratados; o perigo que enxergava em tal política na formação da riqueza da terra.

Duraria sua vigência de seis a quinze anos; quanto ao acôrdo francês, porém, exceção desastrada, mas felizmente única, haviam sido estipuladas algumas cláusulas permanentes. Salvo estas, tôdas estariam findas em 1842, ao máximo, como seria o caso com o tratado inglês, embora, por argumentos de chicana, fôsse sua expiração protelada por mais dois anos, isto é, até 1844.

Todos se queixavam dessas convenções. Os relatórios ministeriais apontavam para o fato de que eram inteiramente inúteis para o país. O Parlamento combatia tais atos, pois impediam o jôgo natural de poder taxador, no equilibrar os orçamentos. Nenhuma vantagem traziam ao Brasil, além de que eram inquinados de violarem a eqüidade, como se expressava a opinião pública. Eram considerados como os piores o tratado francês, por causa das estipulações perpétuas, e o inglês, em conseqüência das taxas ridìculamente baixas consentidas, por exceção, às mercadorias vindas do Reino Unido e também por causa do privilégio da conservatoría, o juiz privilegiado e singular tolerado para os súditos de Sua Graciosa Majestade no Brasil. Todos êsses erros motivavam críticas amargas, pois os brasileiros mal se continham ante exceções tais que Portugal tolerava desde 1450, mas que no Brasil melindravam fundamente os descendentes, muito sensíveis e suscetíveis, da antiga metrópole.

Essa questão de juiz conservador era particularmente irritante, e tornava‑se a pedra do escândalo do tratado. Forçado a  p159 subscrever tal convenção diplomática, a única válvula para o Império era a cláusula VI, pela qual o Brasil se reservava o direito de exigir a sua abolição, desde que um substitutivo conveniente e aceitável foi conseguido, oferecendo garantia igual aos protegidos britânicos. Certo, ainda, era uma disposição unilateral, pois à Inglaterra seria juiz único dessa conveniência e dessa equivalência e mais de uma vez recusou propostas brasileiras de eliminação.

Em 1832, o Código do Processo Criminal fôra votado, sancionado e pôsto em vigor. Sem exagêro, dêle se pode dizer que surgia, naqueles anos, como formoso monumento de saber jurídico e de espírito liberal. Cabia‑lhe regular tôdas as questões legais no Brasil, tarefa que desempenhou até 1841. Nunca ocorreu ao gabinete do Rio, em sua boa fé, que tal obra de progresso e de aplicação generalizada a todos os habitantes do país, pudesse encontrar a oposição da Grã-Bretanha; nesse pressuposto, foi proposto abolir imediatamente, nesse ponto particular, as cláusulas de 1827. Londres nunca quis admitir a sugestão, e respondeu que estava de posse de um privilégio e não tencionava abrir mão dêle. O Brasil, uma e muitas vêzes, insistiu em sua proposta, que tanto era do peito da Nação. O govêrno inglês acabou deixando de responder aos apelos nossos, por mais bem fundados e justos que fôssem êstes. Foi um grande êrro, pois amargurou ao país, e, sem motivos, pesou sôbre as relações entre os dois povos.

Era essa uma das características do gabinete Palmerston-Aberdeen em tôdas as suas gestões pelo mundo a fora. Preponderava a Inglaterra no teatro internacional, por sua política, finanças e seu preparo e fôrça material. Sua atitude perante as nações dirigentes da Europa era quase insuportável, e muito mais ainda quanto a mera expressão geográfica, impotente e sem brilho, que era o Brasil de então.

Nenhum outro recurso ficava, portanto, senão esperar pelo fim do tratado e agüentar os maus tempos. Outros problemas dependiam ainda do ato diplomático malfadado: a administração pelos cônsules britânicos das heranças de seus nacionais, mortos ab intestato. Eram realmente competentes os cônsules para darem fôrça a tais estipulações de última vontade, mas já  p160 que locus regit actum, de acôrdo com a legislação brasileira, ora, freqüentemente, tais autoridades violavam nossas soberanias e procuravam aplicar a lei inglêsa. Conflitos sem fim originavam‑se daí.

Outra queixa provinha dos impostos aduaneiros de 15% pagos pelas mercadorias inglêsas, e tanto mais assim, quanto o govêrno brasileiro, por êrro, se julgava ligado por uma suposta obrigação de não tocar na taxação alfandegária, enquanto o tratado só mencionava as utilidades de produção insular. Não tocava, pois, no poder de tributar outras importações, tais como vinhos, bebidas alcoólicas, azeites e vinagre, comodidades principalmente alvejadas pelas exigências do Tesouro: tais mercadorias, não as produzia a Grã-Bretanha. Enviado em missão especial à Inglaterra, em 1836, o Marquês de Barbacena explicou a situação real ao gabinete imperial, e disse‑lhe como deveria agir para tornar a conquistar sua liberdade de taxar completa. Ainda assim, ficavam fora de tais gêneros tributáveis numerosos outros, e o Brasil ansiava pela eliminação da odiosa exceção.

Nôvo choque de pareceres se originava de fato da dúvida sôbre a data em que viria a têrmo o tratado britânico. Em 1842, dizia o Rio de Janeiro; a Inglaterra, porém, tantas objeções levantava e tais dificuldades fazia surgir, que melhor seria ceder e aceitar uma data mais afastada, de preferência a brigar e combater, pois nenhum meio possuíamos então de fazer valer nosso direito e sustentar uma política de energia. Assim se protraiu a situação até 1844. Vae miseris! . . .

Havia o Parlamento adotado a norma de rejeitar todos os tratados comerciais, e recusar a renovação de qualquer dos que chegassem a seu têrmo. Em conseqüência, em 1841, um ano após a maioridade do imperador, nenhum dêles se achava em vigor, salvas as desgraçadas cláusulas perpétuas do pacto francês, e as duas convenções inglêsas, a de 1826, sôbre o tráfico, a de 1827, sôbre comércio e navegação.

Do acôrdo de 1826 decorreram dificuldades inúmeras.

98. O tráfico. — Fôra subscrito sob a pressão das circunstâncias, quando a simpatia da Inglaterra poderia ser essencial para a vida e os interêsses do Império que acabara de nascer.  p161 A opinião geral, porém, no país inteiro tinha a êsse tratado por desastroso e equivalente a um golpe mortal sôbre a agricultura e a incipiente indústria do país. Por três séculos, a fonte única de mão-de‑obra fôra a escravidão. Escravos e trabalho servil haviam sido a base do progresso material da terra. Quase não existia mão-de‑obra branca, e a única tarefa que sôbre esta recaía era a fiscalização e a direção das turmas de negros. Alto como era o coeficiente de mortalidade dos negros e dos mulatos, ia se tornando um problema difícil o meio de substituí‑los, a solução não se oferecia simples.

Embora, em comparação com a de outras terras, nunca houvesse provado cruel a propriedade dos senhores de escravos no Brasil, não era longeva a existência dos africanos. Donde poderiam vir os trabalhadores de substituição, senão da África? E, dentro em quatro anos, de 1830, tais importações teriam de cessar . . .

Um sentimento geral de estupor e de desespêro invadiu a coletividade de fazendeiros e de produtores, de fato a classe dirigente do Império. Sua mentalidade econômica era menos que rudimentar, e não compreendiam que o trabalho servil nem era produtivo, nem barato. Algumas exceções talvez existissem, entre estudiosos de problemas da riqueza pública, ou mero pugilo de condutores políticos; nesse ponto, contudo, seus adeptos não lhes aceitavam as idéias, e mantinham aferradamente suas convicções de que a escravidão era essencial à existência do Império. Único fator eficiente, sòmente o tempo lograria alterar ou modificar êsse sentir absolutamente unânime.

Nem sequer poderia isso ser objeto de controvérsia partidária: ambos os partidos, o conservador tanto quanto o liberal, pensavam do mesmo modo sôbre a questão, e, nesse ponto, os chefes não conseguiam a obediência de seus comandados. Não podiam combater, pois a resistência que lhes era oposta era a da inércia, e o instituto servil era, de fato, sustentado e favorecido por todos: fazendeiros, autoridades, que só podiam ser escolhidos entre a classe dirigente da nação, os proprietários agrícolas e seus auxiliares; deputados e senadores tinham de sair dessa mesma camada dirigente; ministros saíam do Parlamento assim compostos; chefes de partido e conselheiros, conhecedores  p162 do sentir da massa geral de seus correligionários, dêsses não podiam dissentir.

Situações paradoxais surgiam freqüentemente daí; chefes e dirigentes a aceitarem e aprovarem moções em prol da abolição do tráfico, mas como opiniões individuais e isoladas em seus arraiais partidários, sem que fôssem acompanhados por seus soldados e sem receberem o apoio de suas tropas na obediência à lei e aos tratados, que regulassem dêsse ponto dorido de nossa economia.

Nunca logrou a Inglaterra compreender essa particularidade de nossa vida política. O Brasil longe estava do nível econômico e ético da Europa Ocidental; ainda possuía mentalidade primária, muito próxima dos sentimentos basilares e quase impulsivos das coletividades naturais, frutos imediatos de uma existência quase instintiva. Exigiria longo prazo, ainda, para se divulgarem e dominarem noções precisas e científicas sôbre a situação real do instituto servil, e a ascensão de um para outro nível impunha cuidados e tato no modo de tratar do problema. De tais requisitos, estava a Grã-Bretanha lamentàvelmente privada; e, embora combatessem convencidamente por uma causa essencialmente liberal e cristã, Palmerston e Aberdeen acumulavam, quando não criavam, dificuldades de todo gênero, a complicarem em vez de simplificarem quaisquer soluções.

Pelo mundo a fora, sua direção era por demais brutal e confrangedora, para que fôsse aceita prazerosamente pelas outras nações. Assim aconteceu na política internacional européia, em todos os atritos e choques da Questão do Oriente, onde apenas interêsses contraditórios entravam em jôgo; muito mais agudos os conflitos na América do Sul, onde as divergências essenciais eram desentendimentos profundos sôbre a situação, tanto material como moral, da corrente de opiniões.

Em conjunto e em última análise, entretanto, e embora se não possa contestar que a pressão inglêsa cooperou na extinção do tráfico, não permite mais a evidência histórica já divulgada negar que a política dos cruzeiros inglêses de repressão dificultou, mais do que amparou ou auxiliou os esforços do govêrno brasileiro em apressar o fim do ignominioso comércio.

 p163  99. Ambiente brasileiro favorável à escravidão. — Quase sem exceção, a opinião pública era favorável à importação de negros. As ordens dads pelo govêrno e seus representantes contra tal prática, ou eram desobedecidos, ou então levadas a têrmo com tal morosidade e displicência que não podiam surtir efeito. As razões fundamentais dêsse dissidio eram o divórcio absoluto e a hostilidade reinante entre os observadores e partidários dos tratados, e a massa sólida, compacta dos fazendeiros, isto é, a nação inteira.

Na célebre campanha do Wilberforce, a Inglaterra havia levado anos para poder extinguir o tráfico e, no intuito generoso e humano de eliminar tal monstruosidade da face da terra, queria agora, em quatro anos, suprimir‑la no Brasil, prazo curto demais nas condições do país. Para a Grã-Bretanha, o tráfico representava mera fração de uma atividade comercial e econômica nas Índias Ocidentais; enquanto, na América do Sul, o caso abrangia a vida econômica inteira do Império. Nada é de admitir, portanto, que os fazendeiros protestassem e reagissem contra o golpe aniquilador.

Na opinião insular, contudo, não se compreendiam as dificuldades peculiares do problema, e a desobediência das autoridades locais retardatárias, e a má vontade dos funcionários se atribuíam à duplicidade do Govêrno Imperial; e tal errônea apreciação dos fatos inspirava a ação britânica.

Palmerston e Aberdeen nunca conseguiram separar os dois têrmos: o desejo oficial de cumprir o tratado, e a possibilidade oficial em tornar efetiva sua ordem nesse rumo. Criminavam o Brasil por sua suposta má fé, quando, em realidade, existia insuperável impossibilidade para o govêrno de se fazer obedecer pelos fazendeiros, unânimemente hostis a tais medidas. Por outro lado, como poderiam os ministérios confessar tal impotência? E isto equivalia a desrespeitar os têrmos das convenções estipuladas.

100. Choques das interpretações dos tratados. — Por parte da Inglaterra, ademais, não era cumprido o tratado. A interpretação geral dava‑o como uma restrição internacional a bem do dever humano e superior de suprimir os horrores do transporte  p164 oceânico dos africanos, onde a percentagem de mortalidade ascendia regularmente a 30% das cargas vivas, e as atrocidades do trato dos cativos se revelavam apavorantes. A observância estreita dos têrmos convencionados exercia‑se no sentido de pôr um paradeiro a tais navegações, fôsse justo ou fôsse injusto o modo de proceder com as prêsas.

Haviam sido instituídos dois tribunais, em Serra Leoa, na África, e no Rio de Janeiro; sito na terra de provenência dos escravos, o primeiro recebera maior número de processos de apresamento de navios negreiros. Ali, eram examinadas as condições de legalidade das operações de cruzeiros e das capturas. Um comissário brasileiro tinha de tomar parte nas sessões do tribunal, mas, na generalidade dos casos, êsse funcionário achava‑se ausente. Inda assim, muitas prêsas foram julgadas ilegalmente realizadas, e ordenaram‑se as indenizações convencionadas. Apesar das repetidas insistências do Brasil por lhe serem pagas as somas devidas e restituídos os navios, nunca se realizaram as restituições e os pagamentos, malgrado o fato inegável de ter o próprio tribunal inglês, por si só, condenado a imprudência e a ilegalidade da ação imponderada dos cruzadores britânicos.

Fácil é compreender que, contra tal proceder da nação mais forte, se erguia agitada grita no Brasil. E, como tudo se aproveitava e se inventava e se pretextava para intensificar a importação de mão-de‑obra, ao homem da rua, em geral, se apontava a política inglêsa como violadora da liberdade nacional e de sua independência, uma quebra de honestidade e uma tutelagem insuportável. Apesar de tudo, a política dos cruzeiros foi se desenvolvendo de mais em mais, e tornou‑se cada vez mais dura e severa. O ódio contra os gabinetes de Londres ia se tornando mais acirrado. O ministério do Rio, por mais de uma vez, propôs compensar tais dívidas com as do Tesouro Nacional, provenientes dos apresamentos ilegais feitos pela esquadra imperial no bloqueio do Rio da Prata. Encontrou uma recusa. O alvo verdadeiro da repressão do tráfico era tornar a situação insustentável para os armadores, de modo a os compelir a abandonar seu comércio. Era, entretanto, o pior e mais contraproducente dos meios de proceder, e nunca conseguiu alcançar seu fim, de impedir tais navegações. Nunca revelaram os negreiros mais denôdo,  p165 e aumentaram as massas de gado humano transportado, acima dos mais altos algarismos até então atingidos.

Fôra cometido o grande êrro de querer solver as dificuldades pela compulsão, em vez da colaboração. Isto, em momento tanto mais inoportuno, quanto no Brasil estava o espírito público sofrendo uma modificação muito profunda.

101. Nascimento de um movimento nacional contrário ao tráfico.Projetos legislativos. — À fôrça de discutir o problema, o número dos convencidos da inconveniência econômica da escravidão ia crescendo. No Parlamento procuravam descobrir meios de substituir o trabalho servil; dêles, muitos eram inadequados e pràticamente inoperantes. Eram sintomas, entretanto, todos êles, de verdadeira boa vontade, e apontavam para a união dos esforços.

As condições especiais do país, também, levaram à ruína de tais projetos adotados, e que nenhuma perspectiva tinham de êxito, em região quase deserta como era o Brasil, por 1830 e pelos anos seguintes, sem estradas, sem portos, sem higiene, e sob a ameaça ainda pendente das tribos índias e das epidemias.

Nessa crítica incidiam quase todos os projetos e propostas levadas ao Parlamento.

Em 1830, apenas alguns milheiros de escravos tinham sido importados, e , ainda assim, sob as bandeiras de Portugal e da França. Tomaram‑se providências para reexportar tais negros para África, quer para a recém-fundada República de Libéria, quer para os régulos que os haviam vendido aos mercadores. Dos Estados Unidos, também, alguns tinham vindo, homens livres, enganados e seduzidos por promessas e presentes. Nôvo trama fôra imaginado pelos contrabandistas de trabalhadores; os negros eram declarados livres, mas tornavam‑se a capturar logo que houvessem saído das alfândegas. Foi preciso votar às pressas uma lei para punir e reprimir tal crime; foi sancionada em 7 de novembro de 1831, e regulamentada por decreto de 12 de abril de 1832.

Por êsses textos legais, todo negro que desembarcasse no Brasil se tornava livre. Multavam‑se os importadores, que eram condenados a reexportá‑los para a África. Eram inexeqüíveis  p166 tais dispositivos, pois os principais ou chefes de tribos negras recusavam receber tais vítimas de sua ganãncia para não terem de reembolsar o que tinha lucrado na transação.

Em maio de 1832, começou a elaboração da lei sôbre naturalização de estrangeiros. Por seu Conselho Geral, Minas Gerais pediu providências sôbre fundação de colônias. A 23 de outubro, entrou em vigor a primeira dessas leis. Apesar de a Inglaterra ter aplaudido a lei de 1831, as demasias dos cruzeiros foram se intensificando e tornando cada vez mais vexatórias, e, como conseqüência, a desconfiança e os rancôres contra tais operações se exaltavam de momento em momento. O Brasil propôs à Grã-Bretanha de reexportar os libertos para a colônia britânica de Serra Leoa, alvitre que foi recusado.

Nada se fêz em 1833, mas em 1834 o gabinete imperial apresentou à Assembléia um projeto, pedindo recursos para a repatriação dos africanos. Os deputados, enfurecidos contra a Inglaterra e sua política de repressão, derrubaram a sugestão declarando nada ser aceitável que implicasse obediência ou respeito à tutela dos navios de guerra daquela nação.

Embora assim explodissem tais sentimentos, começava a opinião a generalizar‑se de que os escravos eram um perigo público. Freqüentemente, fazendeiros ou feitôres eram assassinados, vingança terrível de escravos torturados ou punidos sem critério. Procurou‑se aparar o perigo, tornando mais severa a sanção das contravenções e dos crimes, e proibindo o porte de armas. A ameaça, entretanto, permanecia de pé e exigia consideração. Novas ordens se deram para capturar contrabandistas e os negros contrabandeados. Êstes últimos, apenas desembarcados, eram divididos entre certo número de fazendeiros bem conhecidos que tinham o dever de lhes pagar salários, ou pô‑los a trabalhar em obras públicas e estradas. Cresceram os gastos com tais providências; pouco a pouco, iam êstes negros contrabandeados e livres misturar‑se com os escravos, e a distinção tornava‑se impossível.

Foi por essa época que se começou a notar um fenômeno curioso. Os ofensores da lei, em sua maioria, eram portuguêses e espanhóis, e não brasileiros. Em 19 de maio de 1835, a Câmara  p167 dos Comuns votou uma Mensagem ao rei da Inglaterra apontando o estranho fato.

Não possuía o Brasil marinha de guerra bastante para cruzar, visitar e capturar os navios negreiros. Por êsse motivo preferiu o Império negociar com Portugal, Montevidéu, Buenos Aires, Chile e Peru, no sentido de um esfôrço comum para se extinguir tal comércio. Estudou‑se nôvo projeto de tratado com a Inglaterra, e enviado ao Parlamento, restringindo os têrmos sôbre apresamentos. Mas tal iniciativa coincidiu com a recrudescência das arbitrariedades por parte dos cruzadores inglêses, e isso feria todos os sentimentos nacionalistas dos deputados, motivo predominante para a rejeição da proposta.

Procurou então o govêrno descobrir meios outros de solver a interrogação da escassez de mão-de‑obra, promovendo a fundação de colônias. Poderiam estas prosperar ou então fracassar, mas tal não era o ponto preciso a deslindar: a colônia era um instituto agindo como um todo, paralelamente à fazenda, sem se misturar em sua atividade; e a incógnita a determinar versava sôbre a possibilidade da coexistência de turmas de gente branca trabalhando na fazenda, ao lado dos cativos.

Não foi logo encontrada a solução da dificuldade. O pensamento oficial dominante era a imigração, colocada em colônias, a mesma norma de 1812, desenvolvida seis anos mais tarde.

102. Nova missão do Marquês de Barbacena. Estava na Europa, por êsse tempo, o Marquês de Barbacena, e lá recebeu a incumbência de achar gente desejosa de seguir para o Brasil. Buscou fazê‑lo, durante o ano de 1836, tanto na Inglaterra como na Suíça. Sem êxito, aliás. Também se esforçou por obter a assinatura da Grã-Bretanha para um esbôço de tratado entre ela e o Brasil e Portugal, no sentido de se unirem suas esquadras contra o tráfico. Nova decepção o surpreendeu: o gabinete de St. James tinha muito mais fé nos seus próprios navios, cruzando o Atlântico, do que em instrumentos diplomáticos e promessas.

Ganhava terreno no Império a idéia de mão-de‑obra branca para substituir os cativos. Uma Sociedade Colonizadora formou‑se em novembro de 1835, para o fim de proteger os imigrantes recém-chegados; de junho de 1836 a 31 de janeiro de 1839, conseguiu ela auxiliar a 2 508 dêsses colonos.

 p168  Apresentou‑se no Senado nôvo plano de impedir importações ilegais de negros; tal projeto, de 1835, colidia com o tratado de 1826, e teve de ser abandonado.

Em 1836, surgiu nôvo aspecto da questão, em um conjunto de medidas apresentadas pelo deputado Henriques de Resende, baseadas em análise mais detida e detalhada das condições peculiares dêsse gênero de navegação. Os mais terríveis horrores da travessia do oceano aconteciam a bordo dos navios menores, e êstes eram precisamente os barcos preferidos em tais emprêsas. Dos documentos de Serra Leoa, das informações remetidas a Lord Palmerston pelos delegados seus no Rio, se deduzia que 90% das prêsas arqueavam menos de 400 toneladas: em geral oscilava seu porte entre 60 e 240 toneladas, 150‑180 poderia representar uma média normal. Era isto uma conseqüência das feições especiais de tal comércio. As embarcações menores eram de manejo mais fácil, e obedeciam melhor ao velame e ao leme; menos simples de serem vistas e descobertas do que as de tamanho maior, era‑lhes possível navegar mais próximas à costa, em águas rasas nas quais os cruzadores de calado grande se não arriscariam a persegui‑las, com receio de comprometer a segurança de seus cascos. Com dimensões reduzidas, mais maneiras se revelavam para varar a barra dos rios, subir de arrepio à corrente e fundear em pontos escondidos à fiscalização inglêsa, até que estivessem embarcados os escravos; vazio o mar da presença dos cruzadores na embocadura ou nas proximidades dos portos fluviais, mais fàcilmente podiam os barcos dessa provenência, obedecendo a vento e maré, fugir de seus ancoradouros, à noite ou ao raiar do dia, e singrar para as águas profundas do oceano.

Proibidos os funcionários aduaneiros do Brasil de despachar tais navios, deslocado menos de 400 toneladas, se desfecharia um golpe mortal nos navegadores negreiros. Tal era o intuito do projeto do deputado Resende.

Tal a situação legislativa, quando, em 1837, Barbacena voltou da Europa. De todo êsse complexo de propostas uma só fôra adotada, a que se tornou a lei de 11 de outubro de 1837 sôbre locação de serviços dos imigrantes, inteiramente inadequada, pois o Parlamento era incapaz de compreender a noção de  p169 liberdade nos contratos consensuais, e criara uma associação compulsória, igualmente intolerável para o fazendeiro e para seu colono.

Resolveu o marquês enfrentar o grave problema. Tais eram sua influência e o respeito que inspirava, que o ministro britânico no Rio recebeu instruções de lord Palmerston para apresentar ao estadista brasileiro os cumprimentos do gabinete de St. James, por sua iniciativa de tomar em suas mãos poderosas o estudo dessa tarefa.

Havia falhado a lei de 1831, dizia Barbacena. A princípio, fôra sem importância o contrabando, pois ainda se não haviam achado os meios de burlar o texto legislativo. Não se haviam fundado ao longo da costa os depósitos de escravos, onde se ensinava aos africanos a língua do país; mercadores, comboieiros e tanganhões ainda não se tinham revelado, na faina então inventada de percorrer o interior de fazenda em fazenda, e oferecer seu gado humano aos agricultores, precisados de braços. Do momento em que tais processos surgiram em prática, cresceram desmedidamente as importações de negros, e nos três últimos anos, 1834‑37, o nível atingido ultrapassara consideràvelmente, em proporções nunca ouvidas, ao que dantes se havia notado.

Em geral, tais negociantes encontravam o amparo e o auxílio dos fazendeiros, ansiosos por desenvolverem suas lavouras. Difìcilmente se poderia censurar tal tendência, baseada nas necessidades naturais da economia local. Por êsse motivo, enquanto em seu plano o marquês acumulava multas, penalidades e obstáculos sôbre os navegantes do tráfico, abolia quaisquer sanções sôbre proprietários de terras e corretores de africanos desembarcados.

A todos parecia tal projeto um prêmio à perícia e habilidade dos mercadores, astutos bastante para se livrarem os cruzadores e desembaraçarem sua carga humana. Aí se revelava o êrro fundamental do mecanismo proposto.

Anos depois, quando, em 1850, Eusébio de Queirós imortalizou seu nome organizando e pondo em vigor a lei que pôs paradeiro definitivo ao tráfico, tal falha foi corrigida. Salvo êsse ponto, as propostas de Barbacena foram estreitamente aceitas  p170 e seguidas e constituíram o arcabouço da legislação repressiva adotada. É dever nosso referir êsse detalhe, pois no próprio Brasil é pouco conhecida a participação do estadista mineiro no solver definitivamente o melindroso assunto.

Quando apresentado à consideração do Senado, entretanto, tal plano encontrou oposição quase geral e má vontade manifesta. Os abolicionistas do tráfico condenavam a imunidade concebida aos compradores e intermediários em terra; os partidários do comércio de escravos censuravam as peias, restrições e novos tropeços infligidos aos navegadores capturados.

Hesitava o Parlamento em tratar do caso; permanecia quieto, e apenas discutia questões anexas, a latere, corolários que eram de ponto capital. Tais eram a fundação de colônias, a libertação de negros capturados e introduzidos fraudulentemente, e assim por diante. A imigração era escassa, cêrca de 12 000 pessoas nos vinte anos anteriores a 1840.

103. Iniciativa do senador Vergueiro. A parceria. — Por essa época, contudo, no mesmo ano da maioridade de D. Pedro II, um passo decisivo foi dado para iniciar a era do trabalho livre no Brasil. O senador Nicolau Vergueiro, o mesmo estadista que fôra o guia do país em 1831 nos dias da abdicação de D. Pedro I, tentou o primeiro ensaio de uma colaboração branca, de iniciativa privada, baseada na parceria.

Em sua fazenda de Ibicada, estabeleceu algumas dezenas de portuguêses com os quais entrou em acôrdo contratual: viagem, instalações, dinheiro para viver e custear sua lavoura, empréstimos até a primeira colheita produtiva de lucro, tal era o encargo do fazendeiro; tais gastos tinham de ser reembolsados pelo colono, e tirados dos lucros dêstes, sendo mínima a taxa de juros dos empréstimos consentidos. Deduzidos do valor bruto das colheitas todos êsses ônus, o líquido era dividido a meias entre o colono e o dono da terra; ao primeiro era lícito ainda possuir algum gado e pequenas culturas de sua propriedade exclusiva. Aos poucos, melhoramentos insignificantes se fizeram em tal sistema, mas, em conjunto, permaneceram inalteradas as suas linhas diretoras. Tornou‑se o tipo normal de colaboração. Dentro em dez anos, sessenta mil imigrantes adotaram‑no em  p171 São Paulo, e o argumento mais eloqüente de sua aceitação é que, quando os colonos se enriqueciam, e, a seu turno, mandavam chamar novos imigrantes, para a lavrança de terras que haviam adquirido, adotavam o mesmo modo de agir para com seus novos colaboradores.

O nome de Vergueiro, hoje em dia, está quase esquecido, ingratidão normal dos homens: recordá‑lo é puro ato de reconhecimento e de justiça, pondo em plena luz quanto nossa terra lhe deve. Por duas vêzes deu ao Brasil a rota histórica e perduradoura que devia seguir: em 1831, ao evitar que o Império se esfacelasse em republiquetas sem significação; entre 1840, ao dar a solução conveniente ao problema de mão-de‑obra, que êle fundava no trabalho livre, contra a opinião corrente da compulsão servil.

O desenvolvimento agrícola trazia como conseqüência normal os acréscimos nas importações africanas de escravos; para tal, concorria também o ódio contra as provocações dos cruzadores inglêses. Não surgiam sinais de arrefecimento e de melhor entendimento recíproco entre os dois países.

104. O mecanismo do tráfico. — As autoridades consulares e diplomáticas da Grã-Bretanha tinham lançado, tanto na África como no Brasil, verdadeira rêde de observadores que informavam ao Foreign Office sôbre tudo quanto ocoresse em relação ao tráfico. Anualmente, tais dados se publicavam em relatórios especiais, a Slave-Trade, que constituem fonte quase única de esclarecimentos sôbre tais fenômenos sociais e econômicos.

Começava a vigilância na costa da África, acompanhava os navios em viagem, e finalizava em nossa terra. Lidava com barcos, tripulações, carregamentos de escravos, mercadores, protetores, localidades onde existiam os depósitos e se dispensavam amparo e proteção ao nefando comércio.

Por outro lado, é de surpreender o progresso, a perfeição, revelados pelos negreiros. Malgrado a natureza negregada dêsse gênero de atividade, não há como obscurecer a admirável organização que se ostentava.

Em início haviam caido fortemente as importações pelas exigências do tratado de 1826; em 1833, porém, começaram a reagir,  p172 pois já se fizera conhecida a norma de desrespeitar as convenções diplomáticas, e os correlatos cruzeiros britânicos.

Os estaleiros espanhóis davam os navios mais velozes e eram os principais abastecedores dos negreiros. Os mercados sitos no litoral africano diàriamente aperfeiçoavam seus processos no que tocava à rapidez e à precisão. Outro manejo era a questão do pavilhão. Pelas convenções em vigor era pouco seguro ostentar a bandeira brasileira; assim, até 1840, como regra, flutuava nos lenhos a de Portugal. Em 1837, haviam velejado do Rio 76 navios, e dêsses 71 se colocavam sob a proteção lusitana; no mesmo ano, ao mesmo pôrto haviam chegado 92 barcos, 89 dizendo‑se portuguêses; em 1838 e 1839, todos arvoravam o pavilhão das quinas. Em 1840, houve mudança, e de 35 partidas, já 27 mostravam as côres brasileiras; em 1843, de 15 chegadas ao Rio, 6 tinham nos topes a bandeira norte-americana, 3 a portuguêsa, 2 a brasileira, 1 a espanhola e 1 a hamburguesa. Tudo isso se fazia para dificultar a visita dos cruzadores.

Ao se aproximarem os negreiros da costa sul-americana, encontrava‑se um vasto sistema de avisos que se desenvolvera e aperfeiçoara para proteger a entrada segura e não perturbada nos portos e angras. Sob a aparência de barcos de pesca, esquadrilhas de botes, canoas, jangadas faziam‑se ao mar, afastando‑se por dezenas, ou mesmo centenas de milhas do litoral, a fim de ir à procura dos tumbeiros, como os apelidavam na costa da África, e ministrar‑lhes informes seguros sôbre as vizinhanças dos pontos de desembarque, fôrças patrulhadoras, dificuldades da operação, exigências dos mercados e assim por diante.

Em terra, sinais luminosos e fogueiras, à noite, e convenções visíveis, de dia, informavam aos navios do tráfico. Era preferida a seção da litoral entre Cabo Frio e Santos; só por exceção se realizavam desembarques fora de tais limites. Motivavam tal preferência a proximidade e a enorme capacidade de absorção dos mercados próximos do Brasil Central, assim como as facilidades peculiares concedidas pelos cúmplices locais. Para evidenciar quão longe a tal cumplicidade pode‑se apontar o fato de que os negros eram desembarcados atrás da Alfândega do Rio, outros nas praias de Botafogo e de Copacabana, nos areais  p173 dominados pelos canhões dos fortes de São João e de Santa Cruz.

Tais manobras violadoras dos tratados eram cuidadosamente fiscalizadas pelos observadores britânicos, que aparelhavam a repressão. Disso se tem a prova na ascensão dos preços: escravos que valiam 200$0 por cabeça, passaram aos poucos a ser vendidos por 800$0; o seguro cresceu, e, de 15%, subiu a 50%. Os rebanhos humanos importados desenvolveram‑se, de alguns milhares, a 46 000 em 1838, quando entraram em vigor as novas instruções do Almirantado inglês às esquadras de cruzadores, ocasião em que a severidade das ordens fizeram baixar as entradas americanos de 10 000 cabeças, em 1841.

Entrementes, processava‑se no Brasil uma funda mudança dos espíritos. Começava‑se a considerar os negros como elemento perigoso, sempre ameaçador para seus donos. Antes tratá‑los com mais humanidade, e assim prolongar sua sobrevivência e intensificar a natalidade, do que insistir em aceitar da África multidões sempre renovadas, provenientes de tribos cada vez mais remotas e mais selvagens.

105. O tráfico, principalmente interêsse português. — Igualmente, na mentalidade brasileira, começou a delinear‑se a noção de que estava sendo joguete da ganância portuguêsa. Muito mais do que pelos fazendeiros, estava o tráfico sendo intensificado pelos negociantes de carne humana; êstes criavam incidentes e alvoroçavam paixões nacionalistas e envenenavam a emotividade do povo contra as atitudes arrogantes da Inglaterra. Em sua maioria, tais elementos eram portuguêses. Embora antecipando um pouco, podemos dizer aqui que, em 1850, dos 38 ou 39 principais vendedores de escravos existentes, no Rio, 19 eram portuguêses, 12 brasileiros, 2 espanhóis, 2 franceses, 2 norte-americanos, 1 italiano e 1 inglês.

Êsse comércio exigia capitais de vulto, e a maior parte dêles vinha de Portugal. Êste país apoiava e protegia tal gênero de atividade, a ponto de dar títulos e conceder condecorações às principais figuras que nêle intervinham, mesmo depois que Eusébio de Queirós pôs em vigor a lei repressiva das entradas.

Do mesmo modo, e obedecendo ao mesmo sentimento, revelado em seus trabalhos legislativos, de romper todos os liames  p174 com a antiga metrópole, despertou o Brasil ante a evidência de que as importações de escravos acarretavam duas sortes de conseqüências: os proventos iam aos filhos da antiga mãe-pátria; os riscos, os vexames e a vergonha ficavam sendo a parte dos colaboradores sul-americanos. Os principais protetores e sustentáculos dessa atividade eram, por 1839, o cônsul português no Rio, João Batista Moreira, mancomunado com o governador de Angola, na África, o almirante Noronha.

Quando os brasileiros perceberam que estavam sendo manobrados por especuladores lusitanos, e que sua relutância natural em pôr têrmo às importações de cativos estava servindo de pretexto alegado por mercados ultramarinos sem escrúpulos, com o fito de mascararem seus próprios interêsses desalmados, contramarcharam imediatamente. A senha era, por todo preço, libertar‑se da ominosa solidariedade com a metrópole colonial, e nesse rumo se orientava todo o esfôrço do Brasil. Assim se dera com as instituições políticas, as leis e a política internacional. Assim seria também com o instituto servil.

O que as exigências inglêsas não haviam conseguido, o sentimento antimetropolitano obteve. Em parte por êste motivo as importações de africanos baixaram, mas foi certamente grande o influxo da severidade na repressão dos cruzadores. Em seu aspecto geral, já estavam considerando os fazendeiros que as navegações negreiras tinham de cessar, como fato natural, mais cedo ou mais tarde. O receio de levantes dos escravos não deixava de influir também no ânimo da classe agrícola, e um ambiente se estava formando no sentido de abolir as entradas das peças da África.

Por ocasião de se proclamar a maioridade notou‑se um arrefecimento nesse contrabando negro, a apontar para a cessação de tal comércio maldito. De fato, não se reergueu, como veremos, até que novos erros e novas violências ordenadas pelo gabinete de Londres puseram em polvorosa todo o Império contra os excessos desenvolvidos pelos cruzadores britânicos.

106. Atividade intelectual. — A idéia de subordinação a Portugal era insuportável para o espírito público. Na atividade literária, tanto quanto em outras províncias da vida nacional.

 p175  Desde o descobrimento do Brasil, mentalidade, observações, pensamento, objetivos, tudo apontava para o influxo e os pontos de vista da metrópole. Sòmente por 1730 na Bahia, e 1750 em Minas Gerais, esta a mais rica das capitanias, por sua produção de ouro e de diamantes, se encontram os primeiros sintomas de uma alma local. Surge a ufania de se ser brasileiro; aparecem cenários regionais; frutos e flôres do país são descritos; incidentes, ou mesmo fatos importantes da história colonial, formam a base de composições em prosa ou em verso. Nesse último período, na chamada escola mineira, deparamos com panfletos, poemas, sátiras políticas, trabalhos nos quais corre veia rica de sentimentos autônomos, aqui e ali vibrando de surda malquerença contra Portugal. Não bastante diferenciada, entretanto, para formar uma unidade separada, independente, na literatura de língua portuguêsa. Eram clássicos todos êsses poetas e prosadores, cantando, entre tantos mais, alguns fenômenos brasileiros.

Em regra, os poetas portuguêses tinham em pouca monta e escassa estima a produção colonial.

O ano de 1830 vale por um ponto de partida da fase nova em nossa vida intelectual.

Coincidindo com o surto da escola romântica na Europa, prosadores e poetas no Brasil deram início a um grande movimento mental: era o comêço do período de autonomia, como o chamaram certos críticos e historiadores de nossas letras, período de reforma ou estágio romântico, na frase de outros estudiosos.

Digno de nota é o fato de que, sob denominações diferentes todos os investigadores consonam em tomar 1830 como origem do período.

Sente‑se o progresso em todos os gêneros de produção, do panfleto político, como a Aurora Fluminense, até as obras de ficção e as pesquisas históricas. De 1838 data a fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

Deve ser tido como característico o esfôrço de dar largas ao sentimento local, aos conceitos locais, às opiniões e aos pontos de vista brasileiros. Ser português, ou inspirado por modelos  p176 portuguêses, valia por uma má recomendação perante o comum dos leitores. O indianismo e o americanismo vieram à luz, tanto nos versos como nos romances.

Assim, na política, como nas leis, também na vida intelectual, e na literatura, o mote foi — livres de Portugal. E essa fôrça moral libertadora deu origem a expressões novas de uma atividade autônoma, mental tanto como estética.


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Página atualizada: 12 Out 13