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Capítulo 13

Esta página reproduz um capítulo de
Formação Histórica do Brasil
de
João Pandiá Calógeras

Companhia Editora Nacional
São Paulo, 1966

O texto é de domínio público,
exceto para meus anotações.

Esta página foi cuidadosamente revisada
e la creio livre de erros.
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Capítulo 15

 p316  Capítulo XIV

Proclamação e Consolidação da República

Grande e nobre fôra a tarefa cumprida pelo Império. Estava o Brasil sob a ameaça de desintegração por fatôres multíplices, e, entretanto, se manteve unido. Lutas locais duraram cêrca de 20 anos, e, entretanto, foram dominadas dentro da união. Métodos de govêrno haviam evolvido, do absolutismo ao parlamentarismo, não em sua pureza teórica, mas tolerável em seu funcionamento mediante o auxílio do Imperador e de seu Poder Moderador. As eleições tinham progredido, da desordem generalizada a uma representação aceitável dos partidos. Os grandes códigos da justiça e da administração estavam organizados e regiam as relações jurídicas e sociais a contento geral. A escravidão fôra abolida. Mais do que êsse acervo não fôra possível conseguir, pela insuficiente educação política dos partidos. Isto, no que respeita à vida interna do país.

189. Relações internacionais. — Quanto às relações exteriores, a mesma marcha ascensional era notada. Com a abdicação de D. Pedro I, o influxo das idéias, dos alvos e da política portuguêsa ia ficando atenuado: não seria mais o imperialismo o móvel da expansão nacional por territórios estrangeiros. As Regências e D. Pedro II adotavam, como base invariável de sua ação internacional, a norma do uti possidetis, para limites, o sentimento fraternal para com as Repúblicas sul‑americanas e o arbitramento como remédios para solver tôdas as questões litigiosas.

Desde 1828, nunca mais se planejara ou se realizara conquista; tivéramos de intervir no Rio da Prata e nas dissensões  p317 locais, chegamos mesmo à guerra, a chamado dos povos que auxiliamos a se libertarem da tirania, como expressamente o reconheceu D. Bartolomeu Mitre.

Movemos guerra ao Paraguai, por provocação de seu ditador, e com o intuito proclamado de restaurar naquela pobre nação a liberdade espezinhada por um tirano sem escrúpulos. Após a vitória, ajudamos o País com tôdas as nossas energias e recursos para lhe assegurar novos progressos e fortuna.

A hostilidade generalizada contra o Império por parte das Repúblicas sul‑americanas, herdada dos sentimentos análogos da Península Ibérica, ia aos poucos cedendo, e vinha substituída por um ambiente de confiança mútua. Da Europa como da América do Norte, provas idênticas de crédito político e internacional afluíam ao Brasil.

Em 1871, fomos escolhidos para um dos lugares de árbitros entre os Estados Unidos e a Grã-Bretanha na questão do Alabama. Mais tarde, em 1880, o Império foi o árbitro entre os mesmos Estados Unidos e a França, nas reclamações formuladas por cidadãos norte-americanos por prejuízos na guerra do México com Napoleão III. Outra ocorreu em 1884‑85: a guerra do Chile contra o Peru e a Bolívia havia causado grandes perdas e largos danos a súditos de outras nações; firmou‑se um acôrdo para que um tribunal arbitral julgasse as queixas, tribunal composto de três membros, dois representando os governos interessados, e o terceiro, superárbitro, afinal, do Brasil. Dessa forma, França, Inglaterra, Itália, Alemanha, Bélgica, Áustria-Hungria e Suíça solveram suas pendências com o Chile.

Nenhuma dúvida pairava sôbre a posição eminente do Império na América do Sul e novas demonstrações de tal sentimento eram prodigalizadas no Congresso de Montevidéu sôbre o Direito Internacional Privado, e na primeira Conferência Pan-Americana de Washington, em 1889.

190. Instrução pública. — Uma das preocupações principais do Imperador era a instrução. Costumava assistir a todos os exames, concursos e provas entre candidatos a cadeiras das escolas científicas; muitas vêzes, vinha inesperadamente presenciar aulas. Repetia sempre considerar a missão de ensinar como a  p318 mais importante da sociedade. Promoveu conferências públicas; por todos os meios auxiliou investigadores, viajantes e cientistas, tanto nacionais como estrangeiros. É impossível detalhar tudo quanto fêz para os institutos educacionais quer primários, quer secundários; mas, quanto aos cursos superiores, pode‑se apontar o fato de que o Império, em 1889, deixou duas Faculdades de Medicina e de Cirurgia, duas Academias de Direito, uma Escola de Minas, uma de Belas Artes, um Conservatório de Música, uma Escola Politécnica, três Escolas Militares e uma Escola Naval. Bibliotecas Públicas, arquivos, museus, estavam todos modesta, mas convenientemente dotados, e ministravam auxílio intelectual aos estudiosos de tôda espécie e origem. Êle próprio um cientista, mais do que simples amador, tudo quanto se referisse à educação e à ciência o interessava no mais alto grau.

191. Surto econômico. — Tomados em conjunto, os problemas econômicos haviam sido tratados por forma conveniente. O crédito e o escambo podem ser aceitos como números-índices: o primeiro pode ser medido pelos empréstimos conseguidos; em Londres, em 1886, foram contratados a 5% de juros e emitidos a 95, e mesmo a 4% emitido a 90% em 1887, sem garantias especiais, e com ½% para o fundo de amortização. No mercado brasileiro, um empréstimo interno de 4%, pôsto em circulação a 90%, foi coberto duas vêzes. A moeda estava acima do par. A produção crescia; pela bitola das exportações, subira de 222 000 contos em 1870‑80 a 336 000 em 1886‑87. O comércio geral, importação e exportação, nas mesmas datas aumentava de 400 000 contos a 676 500. O golpe da abolição fôra suportado sem prejuízos excessivos; a colheita de café rendeu apenas 60% do que teria normalmente dado, mas fôra volumosa; 6 700 000 sacas, ainda assim, puderam ser vendidas e exportadas a preços altos. Paralelamente com a emancipação dos cativos, chegavam imigrantes: 11 000, em 1881; cêrca de 28 000, por ano de 1882 a 1886; 55 000, em 1887; e de 132 000 em 1888. As vias férreas cresceram a 9 583 quilômetros; telégrafos ascenderam a 18 925 quilômetros, em 1889.

192. Atividade literária. — Desenvolvia‑se a literatura. Dominava o naturalismo: colocado num ponto de vista psicológico,  p319 Machado de Assis pontificava nas descrições da vida e da sociedade dos últimos cinqüenta anos de Império; os aspectos emotivos tinham a preferência de Júlio Ribeiro e de Raul Pompéia, revelando‑se êste pensador profundo em sua admirável obra escrita; Aluísio Azevedo punha‑se em evidência por seu impressionismo e sua poderosa análise minudente.

No domínio da poesia, surgiam nomes de extrema valia: Raimundo Correia, vibrante artista da ansiedade, do pessimismo e da dor; Olavo Bilac, cuja simplicidade cintilante era a mais eloqüente forma para traduzir os sentimentos nacionais, e seus sonhos panteísticos de beleza; críticos, como Tobias Barreto, Sílvio Romero, Araripe Júnior, José Veríssimo. No campo da história citaríamos Varnhagen, mais tarde Visconde de Pôrto Seguro, Joaquim Nabuco, Oliveira Lima, e acima de todos Capistrano de Abreu; embora de alguns dêles se possa dizer que sua produção mais notável se deu após a queda do Império.

193. Individualidade nacional. — Com tal pugilo eminente de criadores intelectuais, estava o Brasil dando quanto podia para evidenciar sua individualidade própria.

Era o Imperador um dos mais fortes auxiliares nesse empenho de manter a evolução civilizadora nossa dentro dos limites postos por nossa história. O Brasil, como a maioria das nações sul‑americanas, é produto legítimo do tronco ancestral ibérico, e herdou as feições especiais de um caráter étnico modelado por um catolicismo profundamente sentido, por seu culto das mais altas regras morais, pela dedicação absoluta aos preceitos de um cristianismo severo e de cavalheirismo romântico.

Seus alvos revelam tendência inamolgável pelo idealismo, muito mais do que pelos lugares-comuns ou por modêlos realistas. Na alma brasileira, espiritualidade, imponderáveis, pesam muito mais do que meros aspectos materiais, e em sua evolução social e política, os deveres sempre tiveram a precedência sôbre os direitos.

Nossa história nacional é longa prova dêsse pendor.

Também, sempre procuramos ansiosamente ser e permanecer o que somos, e não toleraríamos revelar‑nos meras cópias, mais ou menos perfeitas, de qualquer modêlo estrangeiro, por mais adiantado  p320 e progressista pudesse se evidenciar, desde que não fôsse inspirado pelos mesmos ideais. Harmonia, beleza, altruísmo, significam muito mais para nós, do que simples riqueza ou confôrto.

Nossa civilização é qualitativa, e inteiramente incompreensível para espíritos propensos a superioridades quantitativas. Psicològicamente, somos muito mais próximos à Europa, especialmente à Europa continental latina, do que a qualquer outra parte do mundo. Por isso, também, somos compreendidos muito melhor por êsses povos, do que por quaisquer outros.

Depois de Portugal e de Espanha, nossa mentalidade é principalmente devedora ao pensamento francês, e, ùltimamente, com o desenvolvimento dos estudos superiores e da imigração, à ciência da Itália e da Alemanha. É progresso dêstes últimos decênios o têrmo‑nos familiarizado com as produções morais e intelectuais da alma anglo-saxónica. E aqui se ostenta curiosa antítese, pois os Estados Unidos e a Inglaterra são os dois países com os quais temos tido, por um século, já, as afinidades maiores, se bem que de outra natureza.

A Grã-Bretanha, por seu auxílio sem igual, nos dias de Canning, no proteger nossa Independência, e, desde então, em propugnar nosso progresso material. Os Estados Unidos, por seu imediato reconhecimento de nossa soberania nacional, e pela doutrina de Monroe, sempre considerada por nós como traduzindo nossa própria convicção sôbre tal assunto, e que sempre sustentamos como elo comum e essencial entre tôdas as nações de nosso Continente. Num ponto, entretanto, discordamos, pois nós a consideramos como uma regra basilar, internacional, pan‑americana, e nunca como simples norma nacional e de autoproteção dos Estados Unidos.

À medida que o tempo passa, tais dissentimentos deverão desaparecer. Depende isto de adquirirem os Estados Unidos conhecimentos mais fundos do que são suas irmãos do Sul, de sua alma e de seus sentimentos. Depende do surto progressivo dessas nações, e, também, das mudanças fundamentais pelas quais está passando a grande República do Norte, como conseqüência das unidades components raciais dos Estados Unidos de hoje, totalmente diversas da que, em 1823, puramente inglêsa, constituía aquela população.

 p321  Pouco a pouco, a justaposição de mentalidades étnicas contribuirá para permitir se forme um substratum comum, uma como que alma coletiva, nem que seja sôbre número limitado de questões. Será essa conquista um passo para se pensar menos materialmente, e com espiritualidade maior. E, por outro lado, o contato do mundo e das concorrências vitais dará aos sul‑americanos certo senso prático que lhes falta, e que virá ajuntar‑se, e não substituir, à inspiração idealista que nêles predomina.

194. A República e D. Pedro II. — Êste, precisamente, foi um dos serviços notáveis que devemos ao Império e a D. Pedro II. Desde o primeiro momento, a nova República do Brasil mostrou compreender o problema, embora titubeasse por vêzes na execução dêsse programa internacional, coisa natural nos dias iniciais do regime.

Não se pode dizer que D. Pedro e a nova situação estivessem em posição de contraposta inimizade. O primeiro pensamento do Govêrno Provisório foi assegurar o decôro da existência material do Imperador deposto e no exílio, triste necessidade êsse banimento impôsto ao soberano do país pela fôrça dos acontecimentos. Nobremente, como sempre, recusou tal favor o velho monarca. O Tesouro Nacional chamou a si os encargos das pensões a velhos servidores e a famílias pobres, socorridos pelo bolsinho imperial, pelos recursos de sua lista civil: considerou o govêrno ser isto um dever nacional, e todo o país sancionou tal pensamento. Nunca êsse grande cidadão proferiu uma palavra sequer contra o que tinha ocorrido; em seu generoso espírito, êle compreendera; em sua adversidade pessoal, justificou a sinceridade com que afirmara, durante seu longo reinado, ser êle o primeiro republicano do Brasil. Mais ainda: procuraram‑no, na Europa, vários diplomatas brasileiros e depuseram nas mãos imperiais seus cargos oficiais; recusou aceitá‑los, e declarou que lhes não assistia o direito de assim procederem, pois serviam ao Brasil e não ao Imperador, e acrescentou que seu dever era de continuarem suas funções, pois trabalhavam pela Pátria e não pelo Império ou pelo soberano.

Dêsse modo, auxiliou indiretamente ao reconhecimento do nôvo estado de coisas, e proibiu qualquer tentativa por alterar o curso dos acontecimentos. Mais de uma vez declarou que,  p322 chamado de nôvo a prestar serviços ao Brasil que havia governado, tornaria a fazê‑lo. Acima de tudo, ostentou em terras estranhas as mais nobres qualidades da nação brasileira.

Os novos governantes encontravam, em seus dias de aprendizagem, as maiores dificuldades, e em sua honra se diga que, raras vêzes, tanta coisa se fêz em tão escasso prazo.

Sendo revolucionária sua situação, estavam ansiosos por verem o país restituído a um período legal; por outro lado, questões existiam que deviam ser resolvidas sem detença, imediatamente, sem esperar o voto da nova Constituição. Sabiam, além disso, que mais fácil seria estabelecer de chôfre as reformas para as quais o país já se achava preparando, do que adiá‑las para tempos mais remotos, meses ou anos mais tarde, em circunstâncias e condições que se não podiam prever. Ademais, tais reformas eram compromissos republicanos, dos programas discutidos e aceitos pelo partido.

195. A situação de fato. As medidas tomadas. — Um dos pontos era sair da situação de fato. O decreto no 1 atendeu a essa necessidade: proclamava‑se uma república federativa, até que se votasse a Constituição. A 3 de dezembro, uma Comissão especial foi nomeada para organizar um projeto de Estatuto; a 30 de maio de 1890, êsse projeto foi entregue ao Govêrno Provisório, que o submeteu a uma revisão, e a 22 de junho o publicou para ser oferecido à Assembléia Constituinte. Para êsse fim, desde 21 de dezembro de 1889 havia sido marcada a eleição para 15 de setembro de 1890, e o Congresso fôra convocado para 15 de novembro, um ano, portanto, após a proclamação da República.

Até essa data, o Govêrno concentrava em si tanto o Poder Executivo como o Poder Legislativo. Inúmeras medidas foram então tomadas, para atender aos problemas que surgiram das novas instituições. Elevou‑se o corpo eleitoral, com a única limitação de estar o eleitor no gôzo de seus direitos civis e políticos, e de saber ler e escrever. Foram dissolvidas as assembléias provinciais, a fim de aguardarem os têrmos da Constituição por ser organizada. Adotou‑se a grande naturalização, e mesmo foi estipulada a naturalização tácita. Iniciou‑se fundo movimento  p323 descentralizador pelo alargamento das franquias provinciais. Separou‑se a Igreja do Estado; esta medida delicada e importantíssima foi adotada pela forma mais liberal e respeitosa: o poder governamental reconhecendo sua própria incompetência para se intrometer na vida espiritual dos crentes, ou para pretender regulá‑la; as duas sociedades perfeitas ficavam nos seus limites próprios; o padroado oficial, os apelos à Coroa, a intervenção na análise e na placitação dos documentos sôbre assuntos eclesiásticos, vinham abolidos. A separação surgiu, foi planejada e posta em vigor, com um ânimo e uma intenção de respeito, de cooperação e de amor, e nesse mesmo rumo foi aceita e, pouco depois, louvada pelo Episcopado Brasileiro, devidamente reunido. Até hoje, tem funcionado sem atrito, e para o maior bem de ambas as partes, a ponto tal que, na França, durante os duros debates das leis sôbre as congregações religiosas, foi citada a nossa como legislação modelar.

Êste inestimável serviço, devemos ao positivismo, doutrina que norteava o líder militar da revolução, Benjamim Constant Botelho de Magalhães, e, devemos, também, ao espírito liberal de Rui Barbosa, o principal autor da lei.

Tinham, pois, de ser adotadas as conseqüência dessa funda mudança: o registro civil dos nascimentos e das mortes já existia desde 1888, mas o casamento civil e a secularização dos cemitérios tiveram de ser postos em vigor. Alterações imensas e progressivas foram introduzidas na lei civil, tanto nos códigos criminais e na organização judiciária. Nunca em nossa história se havia revelado tal soma de pensamento político e tal atividade se tinha ostentado. O grande nome a citar, nesse período, é o de Rui Barbosa.

Infelizmente, sofreram grandemente as finanças. A razão é óbvia, e Rui Barbosa, ministro da Fazenda, não pode justamente ser acusado dos resultados obtidos, pois tudo era anormal em tôrno de si, e êle não possuía os meios de agir segundo as inspirações de suas próprias idéias, nessa preamar da assistência não solicitada, que êle se via forçado a tolerar.

Desde logo, desapareceu de chôfre a confiança no nôvo govêrno, por parte dos mercados financeiros europeus; sòmente aos poucos, muito lentamente e por graus, se foi ela restabelecendo.  p324 Outra causa estava no fato de que todos se metiam a dar opiniões e intervinham nas decisões. Também havia sido iniciada uma rota política errada e peculiar, desde a abolição do cativeiro; para auxiliar os antigos donos de escravos, arruinados pela libertação, e para derivar atividade e queixas dos prejudicados para rumos de trabalho econômico e de compensações, o que evitaria ataques contra a instituição monárquica, haviam sido concedidas facilidades especiais para operações bancárias; largo ensinamento surgirá daí, e um enchente de sociedades mais ou menos insubsistentes havia invadido o mercado brasileiro.

Era impossível parar. Os fazendeiros arruinados julgavam‑se com direito de reformar suas antigas fortunas por essa forma. Seria prudente, inquiriam de si para si os membros do Govêrno, estancar êsse movimento, em plena febre de especulação, quando monarquistas, ambições desapontadas, vítimas todas do nôvo estado de coisas, desperdiçavam seu tempo e seus recursos na bôlsa de títulos, em vez de conspirarem e planejarem contra as novas instituições, solapando a República recém-nata? Agia tal excitação especulativa como pára-raios a resguardar a segurança do Govêrno.

196. O reconhecimento da República. — Além dessas reformas capitais, duas tarefas delicadíssimas tinham de ser desempenhadas: na vida internacional, a admissão pelos demais povos das circunstâncias novas; nos negócios internos, assegurar a ordem e o respeito.

Verificou‑se mais fácil do que fôra para supor o primeiro dêsses encargos. A 20 de novembro de 1889, a Argentina e o Uruguai tomaram a iniciativa do reconhecimento da República; em 13 de dezembro, foi a vez do Chile; em janeiro de 1890, a Bolívia, a Venezuela, o México e os Estados Unidos apresentaram sua conformidade com os fatos ocorridos, respectivamente a 3, 7, 13 e 29; em fevereiro, Guatemala, Salvador e Colômbia concordaram em admitir a nova ordem de coisas, a 6 e 20; em março, Costa Rica, Nicarágua e Honduras seguiram o mesmo caminho, a 4, 17 e 18. Chegou então a decisão dos governos europeus. A França não esperou a instalação do Congresso Constituinte, e aderiu ao reconhecimento geral dos fatos, a 20 de junho de 1890; Portugal assim procedeu também a 18 de setembro; Holanda,  p325 Itália e Santa Sé, a 23 do mesmo mês; Alemanha, Noruega e Suécia, a 29, a 6 de dezembro, Áustria-Hungria e Espanha.

197. Política interna. — A política interna logo começou a causar sérios incômodos, como era de esperar. O golpe fôra tão súbito, que, fora de pequena minoria de iniciados, quase geral tinha sido a surprêsa. Mais cedo o mais tarde, as oposições e os dissentimentos viriam à frente. Mas o perigo maior procederia de outro quadrante. Uma das conseqüências mais daninhas de uma política baseada na fôrça, e especialmente na fôrça armada, é que não há meio de dar um paradeiro ao processo; hoje, generais chefiam os motins; depois, é aos coronéis que cabe a direção; e, de degrau em degrau, por que pararia na descida? até chegar aos sovietes.

No Brasil, mais uma vez se assistiu ao espetáculo da incapacidade de os revolucionários admitirem que seus erros sejam as causas das reações: é regra geral acusar‑se o partido vencido de fomentar desordens.

Após a abdicação de D. Pedro I, em 1831, e até a morte dêste, era vêzo lançar sôbre os absolutistas e os partidários do monarca decaído a responsabilidade dos distúrbios, das revoltas e dos motins que tanto mal e dificuldades causaram às Regências. Novamente, agora, derrubada a monarquia, tôdas as rebeldes e levantes se apodavam de composições anti-republicanas, nas rodas governamentais; estas davam a autoria de todos os movimentos ou a adversários pessoais dos políticos dirigentes, ou a planejadores de uma restauração imperial possível, coisas absolutamente fora das probabilidades, entretanto, dada a situação dos acontecimentos.

Não que monarquistas sinceros deixassem de apoiar e auxiliar algumas dessas tentativas, políticas, sem influência sensível; contudo, exceção feita da revolta parcial da esquadra em 1893; mesmo então, porém, não se aventurou a tendência restauradora a ir além de uma sugestão de consulta à Nação quanto ao regime governativo a ser adotado. Mas tal feitio do espírito durou largo prazo, e ainda em princípios do século, na literatura partidária, se achavam expressões correntes sôbre "os inimigos da República", causadores de todos os erros cometidos pela turma dos governantes.

 p326  Muitas e graves eram as dificuldades, de várias origens, principalmente financeiras e políticas. As taxas cambiais, de 1889 a 1891, haviam caido de um nível acima do par, 27 pence, a 12 pence, em média; tinham soçobrado as companhias do encilhamento último de 1889, e soçobrado insolváveis; o descontentamento entre os produtores atingia grau muito elevado.

Era o marechal Deodoro da Fonseca um alma nobilíssima e um valente soldado; como político, entretanto, era inexistente. Fàcilmente influenciado pela roda que o cercava, ia e vinha, obedecendo ao último conselho dado. Poderia ter sido o chefe vitorioso de uma revolução, nunca a cabeça de um govêrno real, inspirado em fôrças conservadoras e almejando progressos para a Nação. Ademais, era um impulsivo, movido por seus sentimentos ocasionais, sempre cheio de dignidade e de honra, mas pessoal, tomado os acontecimentos e as opiniões como manifestações favoráveis ou hostis a sua própria pessoa.

Não era, pois, de admirar que se sentisse cada vez mais emaranhado na trevana das competições partidárias, de baixa inspiração e egoístas; cada vez mais torturado por uma real angústia por voltar à vida privada, onde pudesse morrer em paz, tão acabrunhado e doente se sentia. Não lhe podiam consentir seus falsos amigos, que o exploravam e viviam a repetir ser sua presença necessária à frente do govêrno, enquanto, de fato, o que visavam era tirar proveito de suas intimidades com o nobre soldado, e nunca cessavam de o aconselhar no rumo das direções que lhes eram vantajosas, pouco se incomodando com o país.

Estabeleceu‑se, entre êle e os melhores elementos pensantes e diretores da política e da República, uma desconfiança crescente, ràpidamente crescente. Foram tão longe as coisas, que a atividade normal do Legislativo, resultante das próprias exigência constitucionais, lhe era posta ante os olhos como agressões mal intencionadas contra sua pessoa ou suas intenções. Por essa forma, e pelas complicações a se desenvolverem, tornou‑se o marechal cada vez mais prêso de um círculo pequeno de assistentes pessoais e de camaradas dedicados, ignorantes dos problemas de govêrno.

Desde os primeiros dias do nôvo govêrno, tal falta de conhecimento de pessoal apto para administrar havia levado em muitos  p327 casos a nomear para a presidência dos Estados jovens oficiais, mocinhos alguns dêles, que mal saíam dos bancos das escolas militares. Sob o influxo da doutrina positivista, preconizada por Benjamim Constant, cada qual se julgava um profeta, depositário da pureza da fé; mesmo nesses institutos de ensino profissional, alunos discutiam, aprovaram ou censuravam seus ministros e seus chefes.

Logo nos dias iniciais da reunião do Congresso, tornou‑se manifesto êsse espírito crítico contra os métodos dominantes do Govêrno. Havia o marechal devolvido ao Poder Constituinte a soma de prerrogativas que a Revolução lhe tinha conferido; mas a Assembléia determinara que êle deveria ficar à frente do país, até que o voto da Constituição elegesse definitivamente seus chefes. No decurso dos debates, dois grupos se defendiam, um dêles francamente hostil ao rumo seguido pelo Govêrno.

198. Atritos entre Executivo e Congresso. — A própria Constituição dava azo a hostilidades. Como um anteprojeto fôra oferecido pelo Provisório, e o Congresso deliberara emendá‑lo, êsse dever elementar do legislador era tido por uma ofensa. E a lei, assim votada, era, entretanto, um notável trabalho, liberal e prudente. Podiam, e podem, ser feitas reservas sôbre pontos vários, mas é justiça confessar que resultara obra-prima de ciência política, muito acima do que fôra de esperar de um Parlamento eleito em tempos de revolução. Assim aconteceu, graças à escolha para essa assembléia deliberante de vários antigos monarquistas, sinceramente conformados com a nôvo ordem estabelecida; agiram como freio para tôdas as tendências extremistas; além disso, entre os elementos novos de origem republicana, alguns se revelaram personalidades de primeira ordem. Pode discutir‑se se não foi um êrro dar aos Estados o direito de legislar sôbre códigos de processo; se foi conveniente dar‑lhes as terras públicas, e conceder as minas aos donos da superfície dos terrenos onde se achavam, ou se constituíram tais dávidas graciosas verdadeiro e grave prejuízo econômico para a comunhão; do mesmo modo são de duvidosa vantagem as estipulações de meia dúzia de detalhes. Mas, em seu conjunto, o Estatuto básico respirava liberdade e progresso. Pena foi que não cuidasse também  p328 da divisão territorial do Brasil, por entre seus Estados tão desiguais.

Em 1822, as Províncias oriundas das antigas capitanias originárias, com seus primitivos limites, herdaram‑lhes as fronteiras; pouco a pouco, seu desenvolvimento fôra muito diverso em sua amplidão; algumas delas, muito vastas e com população apreciável, tomaram a direção do país, enquanto outras, minguadas ou escassamente povoadas, quase não possuíam a menor influência. De ano para ano, tais diferenças cresciam, o em 1889 a orientação política do Brasil dependia de cinco ou seis circunscrições que guiavam as demais: Bahia, Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo, Pernambuco e Rio Grande do Sul. De pequena valia era o influxo das outras.

Se a República, baseando‑se na evidência de que ninguém discutiria, antes todos acatariam as deliberações do Govêrno Provisório, houvesse classificado as Províncias em Estados e Territórios, e os houvesse organizado com equivalência aceitável quanto a áreas e números de habitantes, grave causa de dissídios tivera sido eliminada, e o grande mal da coexistência de Estados de primeira categoria e de outros de segunda categoria, não mais poderia ser alegada.

Uma das bases da mentalidade brasileira, entretanto, é a tradição. Quando se reuniu o Congresso Constituinte, já era tarde para assim proceder, pois cada antiga Província possuía sua representação e, com ela, poderia opor‑se a qualquer diminuição de seus privilégios.

A própria Constituição era considerada pelo marechal Deodoro como havendo sido planejada pelo Poder Constituinte no sentido de uma retaliação e de uma censura contra o projeto liberal enviado ao Parlamento pelo Provisório e suas autoridades supremas.

Apesar de o Legislativo estar em sessões, organizando a Constituição a princípio e as leis ordinárias depois, o Executivo viria a invadir atribuções privativas do Parlamento, nunca se detendo ante a competência peculiar e as iniciativas privilegiadas das duas Casas. E o Chefe do Estado se sentia melindrado quando lhe eram endereçadas perguntas sôbre o modo pelo qual o país era governado. O mero ato de indagar por tais assuntos, êle o ressentia como prova de desconfiança.

 p329  199. Isolamento do govêrno Lucena. — Tais divergências e choques entre a mentalidade militar de Deodoro, ignorando tudo dos métodos e do govêrno civil da Nação, e a feição corrente do ânimo dos administradores civis e dos políticos, davam lugar muitas vêzes a desentendimentos graves e discussões amargas. Nenhuma colaboração proveitosa poderia se originar de tal conflito de opiniões. De mais em mais, o marechal se voltava para seus amigos pessoais; consultava‑os, para, entre êles, achar conselhos e simpatias.

Tal situação datava dos primeiros dias da revolução. Um de seus ministros deixou‑o em fevereiro de 1890. Pelos esforços combinados dos demais, principalmente de Rui Barbosa, Campos Sales e Cesário Alvim, tôda a energia se despendeu no sentido de ser mantida uma frente coesa e unida, até que fôsse votada a Constituição. Tanto trabalho provou inútil, entretanto, e a 21 de janeiro de 1891 o ministério todo se demitiu.

Nessa ocasião, Deodoro chamou para seu lado um amigo pessoal e político, o barão de Lucena, a fim de lhe prestar seu auxílio na missão de govêrno. Tinham travado relações, quase que imediatamente íntimas, cimentadas por mútua amizade e solidariedade, em 1885, quando Lucena fôra enviado ao Rio Grande a presidir a Província, enquanto o então general desempenhava o cargo de comandante das armas.

Ambos conservadores, fortemente imbuídos da doutrina da ordem, autoridade e disciplina. Ambos honestos, dignos de confiança e essencialmente patrióticos; recorrendo fàcilmente à fôrça, onde a lei, provàvelmente, poderia ser invocada e prestaria o necessário auxílio; formavam um par de verdadeiros e sinceros amigos recìprocamente dedicados. O barão exercia poderoso influxo no ânimo do soldado. Sua boa fé e sua honra impoluta pairam acima de qualquer exceção.

A nomeação fôra completamente natural, e era esperada por todos. Revelou‑se um grande êrro, entretanto. Nos círculos republicanos, o barão não era admirado, nem merecia confiança: fôra conservador por demais energúmeno, e por demais adstrito a interêsses partidários, para que pudesse captar crédito junto aos elementos democráticos que o haviam sempre estrênuamente combatido; hostil aos republicanos, não lhes tinha simpatia, e a  p330 seus olhos avultavam como pessoal absolutamente desconhecido. Assim, a seu turno, constituiu seu ministério com amigos pessoais, respeitáveis e competentes, mais todos êles monarquistas, salvante um, e dando desta forma nova causa de desconfiança e de animosidade a seus adversários parlamentares.

Em muitas coisas era o barão superior ao marechal, e especialmente nisto: enquanto êste, combatido e incapaz de transigências, afastava qualquer armistício com seus oponentes, o ministro tinha excelente senso político, sabia ser preciso e desejava, para poder governar, reinasse paz entre partidários tão pugnazes.

Tentou obtê‑la, e a pediu com absoluto desprendimento, oferecendo‑se a resignar seu cargo e voltar à vida privada desde que assim pudesse assegurar a conciliação e o desarmamento geral no conflito das facções. Falhou nessa tentativa tão merecedora de encômios, pela intransigência do senador Prudente de Morais, então presidente da Assembléia Constituinte. Espírito nobilíssimo, e que estava fadado a servir ainda ao Brasil com sua heróica energia e sua abnegação sem limite, tinha êle, entretanto, algumas falhas, e era mais um doutrinário que um político comodatício. Nessa conjuntura, via na política do marechal e sua incapacidade de governante, uma eterna ameaça para os ideais republicanos.

Aproximava‑se de seu fim a tarefa de constituir o Estatuto Fundamental, e cada vez mais o ambiente se revelava explosivo. Lucena, prevendo complicações crescentes a par de uma hostilidade ascendente, havia pensado e desejava dissolver o Congresso, apesar da ilegalidade do ato, logo em seguida ao voto da Constituição; Deodoro não quis ouvir falar nisso. Tentou firmar a paz com o Parlamento; foi por êste repelido. Caminhavam as circunstâncias para um empate absoluto e sem solução.

Nova dificuldade surgiu da eleição para a primeira presidência constitucional da República. Evidentemente, uma única escolha era possível e lógica, Deodoro. Mas seus adversários, entre os quais muitos oficiais que haviam sido eleitos para o Congresso, iniciaram uma forte campanha em prol de uma presidência civil, embora, de fato, visassem apenas ferir e desacreditar  p331 o velho soldado, ao qual em última análise se devia a realizabilidade da mudança das instituições.

Prudente foi escolhido por êles para seu candidato. Nunca havia o senador paulista almejado tal distinção, e tanto assim que quando exortado por amigos políticos para desistir de receber votos para o cargo, recusou fazê‑lo por essa mesma razão de que nunca promovera tal movimento, ao qual era totalmente estranho. Era um grande êrro: injustiça para com o fundador do nôvo regime; causava perigosa agitação em um momento de graves conjunturas políticas: acirrava a tensão das relações entre os dois grupos contendores.

Evidenciavam‑se as conseqüências desde logo.

A 25 de fevereiro de 1891, o Congresso votou: em 234 membros presentes, 129 escolheram Deodoro, enquanto 97 votos recaíram em Prudente, presidente da Assembléia. Deodoro tomou tal proceder como agressão pessoal contra si, e considerou tais congressistas como inimigos seus.

Reunindo‑se em seguida, em sessão ordinária, portanto, apresentaram‑se projetos de lei, e fizeram‑se requerimentos de informações ao govêrno, tudo dentro nas funções normais do Legislativo; referiam‑se êsses últimos a nomeações feitas pelo Executivo, ou a atos dos departamentos ministeriais, ou preenchimentos de cargos no Supremo Tribunal Federal, ou ainda à lei de responsabilidade presidencial. Em realidade, obedeciam, dentro das normas legais, ao desejo confessado de apear do poder ao marechal presidente; êste tomou tais iniciativas como outros tantos ataques contra sua autoridade.

200. Dissolução do Congresso. — O conflito estava patente, com todos os seus exageros por ambos os lados, principalmente por parte de Deodoro, embora a Prudente coubesse largo quinhão de responsabilidade no formar ambiente de tal perigosa explosibilidade. Era hostil ao Presidente a maioria do Congresso, e sua conduta se ressentia dêsse dissídio.

Incapaz de sopitar sua indignação, a 3 de novembro Deodoro dissolvera as Câmaras.

No mesmo dia, a maioria redigia e assinava um Manifesto à Nação, polìticamente ineficiente, pois que só se pôde publicar  p332 e divulgar após a Restauração do Estatuto e da Lei. Nesse documento se dava a resposta insofismável às acusações do Executivo, de modo convincente, claro e sincero; mostrava‑se ainda quanto aberrava da ciência de govêrno e do regime o ato ditatorial de Deodoro, e quanto se manifestavam improcedentes os motivos que invocava para se justificar.

Êsse era precisamente o sentir geral do Brasil, tanto assim que, a 23 de novembro, escassos vinte dias após a dissolução, um levante unânime sacudiu o país todo, e mostrou ao marechal que sua atitude era condenada pela imensa maioria de seus compatriotas. Rio Grande do Sul estava em revolta franca, e Pará em vésperas de sublevação igual; no Rio, o Exército e a Armada o combatiam, tanto quanto o Congresso e o elemento civil. Na noite de 22 para 23, Deodoro convenceu‑se de que todos o abandonavam, e era a quase unanimidade da Nação que assim procedia.

O choque recebido por êle ao se convencer de tal, de estar sendo moralmente escorraçado pela parte melhor de nosso povo, foi indescritível. Sentimentalmente, foi golpe mortal de que se não levantou. Em sua longa carreira, fôra um soldado, em mais de uma ocasião agindo com heroísmo indiscutível. Um coração nobilíssimo; uma alma dominadora, cheia de meiguice, de bondade e de patriotismo; um chefe a conduzir seus homens, em coisas militares; fraco, veleitário por crises, na vida civil; apto para comandar subordinados, mas não para dirigir cidadãos; odiando o poder pelo poder; confrontando agora com a necessidade de derramar sangue de patrícios para se manter no govêrno. Nunca, por um instante sequer, admitiu semelhante dilema.

Assim que Lucena lhe mostrou o preço a pagar para continuar governando, se êsse fôsse o seu intuito, vidas brasileiras a extinguir para assegurar sua situação pessoal, recusou fazê‑lo e renunciou à presidência.

Seu Manifesto foi um puro grito de sincera dor, ferido que estava em seus sentimentos mais íntimos pela ingratidão de seus concidadãos e de seus pretensos amigos:

"Circunstâncias extraordinárias, para as quais não concorri, perante Deus o declaro, encaminharam os fatos a uma situação excepcional e não prevista.

 p333  Julguei conjurar tão temerosa crise pela dissolução do Congresso, medida que me custou a tomar, mas de cuja responsabilidade não me eximo. Pensei encarreirar a governação do Estado por via segura e no sentido de salvar tão anômala situação.

As condições em que nestes últimos dias, porém, se acha o país, a ingratidão daqueles por quem mais me sacrifiquei e o desejo de não deixar atear‑se a guerra civil em minha cara pátria, aconselharam‑me a renunciar o poder nas mãos do funcionário a quem incumbe substituir‑me."

201. A Legalidade. Floriano Peixoto. — O marechal Floriano Peixoto, vice-presidente da República, tomou conta do poder no mesmo dia 23 de novembro, e inaugurou‑se seu govêrno.

Embora tanto se tenha escrito sôbre essa personalidade tão interessante, curiosa e ambígua, ainda permanece um enigma para a história. Era um chefe nato, de molde inteiramente diverso do de Deodoro. Êste inflamava, sugestionava e inspirava o entusiasmo por sua coragem inata e sua sobranceria aquilina. Aquêle, impávido e calmo, impunha sua vontade pela frieza, pela previsão e pelo cálculo. Um relâmpago deslumbrante, em um caso; a inflexibilidade de um teorema, no outro.

Durante a guerra do Paraguai, havia valentemente cumprido seu dever, a seu modo peculiar, quieto e eficiente sem frase nem teatralidade de gestos; não segundo o modêlo cheio de audácia de seu camarada e amigo, mas tranqüilamente, fruto de inteligência mais do que explosão de sentimento. Talvez, a melhor caracterização fôsse ainda que, enquanto era êle um cérebro calculador, seu êmulo ainda uma alma. Possuía Floriano rara soma de qualidades morais, a par de uma desconfiança prudente para com pretensos amigos, mais afeiçoados a posições e ao triunfo do que a ideais e pensamentos. Poupava palavras, guardava para si suas opiniões íntimas e seus pontos de vista, quando possível evitava intimidades, era solidário com seus camaradas e nunca desertava a seus subordinados.

Era muito forte sua posição no Exército, inferior à de nenhum outro chefe, nem à de Deodoro. Havendo divergências, êste talvez pudesse, no primeiro movimento, arrastar empós de si a maioria; vindo a reflexão e o estudo, mudavam as posições,  p334 e Floriano venceria ao final, pelo conselho, pela persuasão, pela inteligência, pela superioridade mental.

Na vida política, havia sido um liberal convencido, muito adiantado a caminho da República; tanto, que nos dias últimos da questão militar, alguns o suspeitavam de não mais ser monarquista. Pertencia, entretanto, ao número daqueles que tinham por irrealizável um terceiro reinado.

O chefe do último gabinete imperial, o Visconde de Ouro Prêto, sabendo que seu ministro da Guerra, o Visconde de Maracaju, não poderia continuar à frente da pasta por seu mau estado de saúde, já havia convidado a Floriano para seu sucessor: o general havia aceito. É fato, contudo, que êle estava a par da revolução em marcha, e tinha conferenciado com Deodoro poucos dias antes da explosão. Seu respeito da lei era absoluto, até o ponto em que fortalecesse sua própria autoridade: não era homem para se envolver em motim ou para derrubar um ministério ou um gabinete. Mas, eventualmente, examinaria e poderia aceitar uma revolução. E iria até as últimas com seus camaradas.

Nos acontecimentos que precederam o 15 de novembro, é difícil explicar satisfatòriamente sua posição. O Imperador e Ouro Prêto o tinham por um simples traidor.

Talvez não fôsse tão simples o verdadeiro aspecto dos fatos. Parece provável que só se compenetrou da gravidade da situação pouco antes de seu desfecho, após sua entrevista com Deodoro, já mencionada. Viu então que o general ia dirigir no levante a quase totalidade das fôrças da guarnição do Rio, com o assentimento simpático das tropas do Sul. Sabia que nenhuma resistência lhe poderia ser oposta pelo elemento civil, e que, quando muito, seria uma antecipação por poucos anos de acontecimentos fatais. Vencer a fôrça com outra fôrça, significava derramar sangue brasileiro sem segurança de êxito, dividindo o Exército em dos grupos hostis, e a isto era êle positivamente infenso. E para quê? Para adiar o advento do regime nôvo até a morte do monarca reinante.

É evidente que seu dever era abrir os olhos ao Govêrno, e êste não teve o aviso da situação real da tropa: mesmo que,  p335 após ter comunicado os fatos, tivesse de tomar parte no levante ao lado dos insurgentes, em favor da revolução iminente. Nesse ponto, nenhuma censura pode ser severa bastante para profligar a deslealdade de sua conduta.

Pràticamente, teve, entretanto, uma conseqüência favorável: evitou‑se um conflito cruento, cuja inutilidade era patente, já que não conseguiria nunca modificar a impossibilidade fundamental do advento ao trono da Princesa D. Isabel.

A ambos os partidos, tal procedimento apareceu como dúplice: já citamos a opinião dos monarquistas; a dos republicanos é evidenciada pelo fato de que, no Govêrno Provisório, foi nomeado ministro da Guerra, e mais tarde foi escolhido vice-presidente da República, a fim de se evitar o perigo de nôva traição, o que traduzia o sentimento de Deodoro, pois poderia tornar‑se o centro de convergência de todos os descontentos do Exército, e seu chefe em qualquer ataque às autoridades legais.

Êsse era o homem, e tal era o ambiente em que se movia, que ia receber o poder das mãos do nobilíssimo e sincero marechal Deodoro.

202. Pródromos da revolta da esquadra. — A maioria dos governadores de Estado havia aceito o golpe de Estado. Deixando‑os no poder, grande ameaça ficava pendente: a maioria do país oficial, propensa a opor‑se à nova situação. E, ademais, tornou‑se evidente que Floriano era por demais inteligente e um político astuto e previdente demais, para deixar de ver que nuvens prenunciadoras de tormentas se amontoavam em vários pontos do horizonte.

Dificuldades, criadas pela infeliz orientação financeira dos anos anteriores, davam base sólida às hostilidades, tanto no Congresso, como na imprensa e nos partidos locais. Enquanto, a 15 de novembro de 1889, a surprêsa fôra completa, agora a oposição, tanto a monarquista como a republicana, chegava aos poucos, mas seguramente, a uma atitude combativa, e inspirava uma campanha apaixonada contra os dirigentes no poder.

Como todo o mundo, Floriano percebia que um choque se avizinhava; para assegurar o prestígio da autoridade, sua idéia predominante, o único meio de defesa era não permitir que as  p336 situações políticas locais se tornassem base para os ataques. Por êsse motivo, não se opôs, e mesmo auxiliou aos grupos estaduais a deporem do poder os presidentes de Estado e os governadores, que haviam tido conivência com a dissolução inconstitucional do Congresso.

Como era natural, tal procedimento ilegal desenvolveu contra êle uma justificada onda de malevolência, imprecações furiosas partidas da gente posta violentamente de lado, de todos os descontentos que foram avolumar as fileiras dos seus adversários, mas que, de fato, não modificavam com isso suas antigas normas de hostilidade contra o homem que havia restaurado o respeito à lei: como vinham substituir a êsses adversários, personalidades adesas à nova ordem de coisas, ficavam fortalecidas as novas situações, e, portanto, a dêle próprio. Era nova ilegalidade, é certo, mas tinha a justificá‑la a desculpa da pura necessidade, condição de vida para o govêrno.

Imediatamente, em 1892, começaram conjuras contra êsse movimento de deposições estaduais; no Rio, dois fortes tiveram de ser silenciados e reduzidos em janeiro; em abril, 13 generais intimaram Floriano a se submeter, mas foram feitos prisioneiros e exilados; em Minas, Mato Grosso, São Paulo, Rio de Janeiro, Amazonas, Maranhão, sublevações ocorreram de caráter vário e de importância desigual, e que foram tôdas sufocadas. No Rio Grande do Sul, entretanto, os distúrbios assumiram aspecto muito mais grave, e levantaram o conflito ao nível de uma contestação sôbre a legitimidade das instituições republicanas, sob o influxo do antigo senador monarquista Gaspar da Silveira Martins. O quartel general da revolução federalista, como foi chamado por um artigo de seu programa político, achava‑se ao longo da fronteira com o Uruguai, e muitas vêzes o Brasil foi invadido por bandos irregulares organizados no território estrangeiro.

A propaganda feita pelas oposições unidas contra Floriano, ao mesmo passo que favorecia a causa dos revolucionários rio‑grandenses, solapava o govêrno legal, e, exagerando ou mesmo deturpando as intenções e os atos oficiais, apontava para o vice-presidente como planejando a instituição de uma ditadura militar permanente, a fim de fugir à eleição de um civil, no fim do têrmo constitucional da presidência em vigor, isto é, em 1894, e de  p337 assegurar o benefício do poder para as classes armadas, responsáveis primeiras da proclamação da República.

O centro coordenador de todos êsses planos e boatos era uma associação singularmente mesclada de políticos de todo jaez e de tôdas as provenências, multidão heterogênea entre tôdas. Meros ambiciosos, por um lado; alguns dêles em posições oficiais, tais como o ministro da Marinha, o almirante Custódio José de Melo, que enviou a Floriano sua demissão do ministério, com escândalo e espalhafato, para chamar sôbre si a atenção pública. Monarquistas puros, outros, buscando derrubar o regime. Teoristas intermédios, propensos à monarquia, mas advogados de uma consulta ao país, para que êste mesmo determinasse a solução final da forma da govêrno a adotar; mas, de fato, monarquistas que sentiam que suas tropas eram republicanas, e, para recurso de acôrdo, alvitravam o processo plebiscitário de decisão.

Esta foi a salvação de Floriano. Estava a par de tudo, e via que o bloco oposicionista estava fendilhado por todos os lados, intenções e modos. Não poderia agir segundo direções comuns, nem simultâneamente. Em 1892‑1893, sentiu‑se realmente enfraquecido por essa campanha hostil; mas quando a luta chegou a culminar, estavam seus adversários desunidos demais e desorganizados, para poderem dar tôda a sua energia ao ataque. Isto salvou o Govêrno.

203. Revolta da esquadra. — Existiam velhas rivalidades entre Exército e Marinha; intrigantes e conspiradores tentaram sucessivamente tirar partido dêsse malquerer recíproco, em seus esforços contra o govêrno vice-presidencial. Além disso, um detalhe diferencial se dava nas opiniões dos oficiais de terra e nas dos de mar, sendo que os primeiros eram republicanos em sua maioria, enquanto os outros não escondiam seus pendores favoráveis à dinastia deposta. Entre êstes, destacava‑se a figura prestigiosa do almirante Luís Filipe de Saldanha da Gama, oficial de alto renome na marinha, possuidor de dotes notabilíssimos, centro de largo grupo de entusiastas afeiçoados e admiradores, principalmente entre os mais novos postos dos quadros. Dedicação pessoal, entretanto; em grau muito menor, política.

Convergiam todos êsses elementos, apesar de tudo, para a revolta de 6 de setembro de 1893, sob a chefia do antigo ministro  p338 da Marinha, o almirante Custódio, que era contudo um republicano sincero. Durante certo período, no início da insurreição, Saldanha, que comandava a Escola Naval, se manteve neutro; aderiu em seguida aos revoltosos, com um programa tendente a consultar a nação sôbre o regime a ser adotado em última análise.

Para explanar a gravidade do caso, cumpre acrescentar que possuíam os insubordinados todo o material flutuante, du guerra e de comércio, surto no pôrto do Rio de Janeiro, e com êsses recursos começaram logo a bombardear a cidade, sendo o vice-presidente tomado de surprêsa por êsse romper de hostilidades. Intimaram então a Floriano, para que houvesse de renunciar a seu cargo. Não foram atendidos, porém, e o marechal revidou armando e defendendo a cidade.

Recebeu nesse momento o inesperado e decisivo auxílio das esquadras estrangeiras fundeadas na Guanabara: o Rio era cidade aberta, insuscetível de ser bombardeada, de acôrdo com a lei internacional, declararam os oficiais comandantes; além do que, a população forasteira sendo muito importante, suas vidas não podiam ser postas em perigo. Custódio nunca tinha imaginado que qualquer resistência fôsse possível ou efetiva, e a condição de êxito de seu plano residia em ser sua ação imediata e decisiva. Via‑se agora confrontado com a impossibilidade própria de se mover, e seria absurdo atacar os navios de guerra estrangeiros, em número bastante maior e de poder combatente superior ao de sua esquadra revoltada.

Anulado dêste forma seu elemento de fôrça, ao invés de uma iniciativa belicosa subitânea e de êxito imediato, contemplava sua frota condenada a permanecer fundeada e inativa, sem poder usar sua artilharia. Não tinha base em terra, não podia levantar recursos e dependeria de atos de pirataria para poder alimentar suas tripulações com as mercadorias que tirasse dos navios mercantes carregados de gêneros. Longe de dirigir um assalto triunfal contra o poder legal, ficaria reduzido à impotência, apenas capaz de pequenos desembarques sem significação militar, repelidos sem detença pelas tropas territoriais de defesa litôranea.

Sumia‑se a vitória em lúgubre derrota. Sua iniciativa não encontrava eco pelo país em fora: todos os grandes Estados  p339 declararam‑se pelas autoridades legais. O Govêrno revelava‑se forte e enérgico. De uma feita, o corpo diplomático consultou a Floriano sôbre como receberia o desembarque de pequenos contingentes estrangeiros, destinados à proteção de seus respectivos nacionais. "À bala", respondeu‑lhes o marechal. E cumpriria sua promessa. Nunca mais a pergunta foi renovada.

Pôde o vice-presidente organizar a artilharia de defesa da capital, e comprar, tripular e treinar uma frota nova, com a qual, a 13 de março de 1894, ofereceu combate aos navios rebeldes, na própria baía do Rio de Janeiro.

Nessa data, o êxito da luta já não oferecia dúvida aos próprios civis menos avisados, quanto mais a profissionais. Enfraquecidos por escaramuças quase diárias ao longo do literal; tendo perdido muitos homens; exauridos de recursos, de víveres e de munições; os melhores navios haviam abandonado o pôrto com o intuito de acharem abrigo nos portos do Sul e de unirem suas fôrças com as dos federalistas rio‑grandenses.

Os elementos navais remanescentes na baía, sob o comando de Saldanha, eram impróprios para o combate: com cêrca de quinhentos homens a bordo, abandonou seus barcos e procurou asilo nas duas corvetas portuguêsas então surtas na Guanabara. À esquadra legal, coube apenas o trabalho de se apoderar dos lenhos abandonados e desertas por seus tripulantes.

Custódio, em sua navegação de cruzeiro, procurou apoderar‑se de algum pôrto importante, mas foi repelido. No Rio Grande do Sul a defesa costeira o fêz recuar. Resolveu então entregar seus navios a proteção da Argentina. Sua unidade principal, o couraçado Aquidabã, sôbre o comando de Alexandrino de Alencar, não quis seguir tal exemplo: subiu costa acima até Santa Catarina, onde se achava a sede de um govêrno revolucionário; no pôrto de Destêrro, foi torpedeado pelos destrôieres da frota legal, a 16 de abril de 1894. Assim terminou a aventura naval.​a

204. Revolução federalista. — No Rio Grande do Sul, a revolta federalista havia começado em junho de 1892; o almirante Custódio, então ministro da Marinha, pendia em seu favor desde os primeiros dias de luta, e até alegou tal simpatia para justificar seu pedido de demissão do cargo, pois Floriano recusara auxiliar  p340 aos rebeldes. Quando a esquadra estava no Rio, tentou imediatamente pôr‑se em relação com os insurretos, e em setembro enviou um de seus navios a Santa Catarina por saber que o governador local, Manuel Machado, era adversário do vice-presidente. Ao chegar, a presença do barco mudou a situação, formou uma junta local revolucionária, e assim foi conseguido um ponto de apoio em terra.

Fôrças federalistas, vindas do Rio Grande, rumo do Norte; outras tropas irregulares caminhando para o Norte e partidas de Santa Catarina; os navios revoltados, a auxiliarem o marítimo; todo êsse conjunto de elementos de guerra atacaram e submeteram o Estado do Paraná, no qual a guarnição legalista, fracamente conduzida, dizem mesmo que traiçoeiramente comandada, pelo general Pêgo Júnior, não ofereceu a devida resistência. Dêste modo, as incursões federalistas se estenderam do Rio Grande até Paraná, e seu chefe, bom guerrilheiro e chefe atilado, Gumercindo Saraiva, pretendia invadir São Paulo e mesmo o Rio de Janeiro.

Enquanto as lutas navais não haviam ainda sido vencidas, não seria fácil preparar tropas para repelir a invasão. Aos poucos, entretanto, iam se acumulando em São Paulo os recursos necessários, cerca de 6 000 homens. Abandonada que foi a baía de Guanabara, melhorou a situação, e ao Govêrno foi lícito agir de modo a repelir progressivamente os federalistas para o Sul, donde vinham. A ponta de espada foram levados para as fronteiras. Em um dos combates, a 10 de agôsto de 1894, em Carovi, Gumercindo caiu mortalmente ferido. Começou a dispersão.

Os refugiados a bordo das corvetas portuguêsas, do Rio foram transportados por elas para o Rio da Prata, em meados de abril; aqui, em circunstâncias mal aclaradas até hoje, cêrca de metade logrou fugir dos navios e desembarcar em território argentino. Cruzaram imediatamente o rio para a margem uruguaia, e apressaram‑se em reunir‑se aos federalistas, que, combatendo, em retirada, faziam seu esfôrço máximo para alcançar o território neutro dos países vizinhos; eram os restos desbaratados da hoste de Gumercindo. A 24 de junho de 1894, em Campo Osório, se deu encontro sangrento com as fôrças legais; a maior parte dos marinheiros e dos oficiais navais evadidos do  p341 Rio, aí achou a morte. Entre os cadáveres estava o de Saldanha da Gama. Com êle desaparecia a feição restauradora e monárquica da revolução.

Estava esmagada esta última. Ainda, aqui e acolá, durante um ano, deram‑se recontros com tiroteios sem alvo ou alcance, sem objeto e conduzindo a nenhum resultado, tão irremediàvelmente perdidos estavam os revolucionários. Eram as últimas brasas de um fôgo extinto. Monarquia e parlamentarismo ficavam decisivamente aniquilados. A receita republicana permanecia a única de pé.

205. Lição da História. — Hoje em dia, com a perspectiva da distância, pode ser tentado um esfôrço de evolução.

O sentimento de confiança em si próprio havia alvorecido em dias longínquos, nos tempos coloniais, quando, desamparado, e mesmo contrariado pelo esfôrço metropolitano, o Brasil surgira do nada, crescera, se defendera e se erguera à igualdade prática com Portugal, e assim desbravava o caminho para a Independência.

Os exemplos da França e da Norte América; a semelhança de sentimentos com o que se estava passando nas antigas colônias da Espanha no Nôvo Continente; êsse estado gregário do espírito que leva ânimos simplistas, quer individuais, quer coletivos, a fugir a soluções originais, para preferir cópias, que poupam esforços, a novos originais, que exigem dura meditação e trabalhos de grande cuidado; a cooperação de todos êsses elementos influenciou aos brasileiros e levou a simpatizar com a idéia republicana. Prevaleceu, entretanto, a monarquia, porque ela já existia no país, e foi o principal agente da Independência através de D. Pedro I, herdeiro da coroa.

Quando êste abdicou, mais uma vez a questão foi posa. Devemos à sabedoria do senador Vergueiro e de Evaristo da Veiga, os verdadeiros líderes da opinião naqueles dias, a resposta negativa. O sentimento popular de piedade e de afeição para com o Imperador-menino, confiado à Nação pelo pai quase banido, fêz o resto. O mesmo sentimento manteve inalterada a situação durante as regências, apesar das lutas políticas dêsse período.

Após a Maioridade, durante vinte anos, dormitou a idéia republicana tão profundamente, que parecia esquecida.

 p342  Começou a reviver pela era dos sessenta. As principais causas foram os ataques incessantes dos próprios partidos imperiais contra o Imperador, e seu influxo pessoal. Como acusações e apodos vinham sem trégua, partindo sucessivamente de ambos os lados, quando em oposição, ocorria, pràticamente, unanimidade de censura contra D. Pedro II.

Após a crise trazida pela demissão de Zacarias, em 1868, a vanguarda liberal caminhou para a frente, formando o partido radical, e mesmo, os mais adiantados, constituindo um grupo republicano. Nunca mais cessou de se agitar, intrigar, e derruir as bases da instituição imperial. Nada mais tinham de fazer, do que apontar e bordar comentários sôbre os libelos formulados pelos monarquistas mais notórios.

Sucessivamente, fazendeiros, Igreja, classes armadas viram‑se feridos em seus interêsses e seus melindres; desafeição crescente ia tomando conta do terreno da fidelidade dinástica; o único liame restante era a afeição, o respeito e a gratidão pessoal para com o monarca.

Êste não ligava importância à vanidade ou à situação pessoal que pudesse ter. Mais de uma vez, manifestou quanto seu espírito era liberal, indo mesmo quase aos limites do republicanismo. Nas vésperas da derrubada das instituições, o Conde d'Eu repetia que a Família Imperial nunca imporia suas opiniões à vontade livre da Nação.

O grupo positivista do Rio, no qual dois nobres pensadores, Miguel Lemos e Teixeira Mendes, estudavam cuidadosamente ambiente e acontecimentos, tinha por tal forma essa convicção, que, em 1888, apelaram para o próprio Imperador, concitando‑o a se pôr êle mesmo à frente do movimento e o transformar em realidade. Foram o alvo de mofa, e para êles se endereçaram chufas irônicas. E, entretanto, êles tinham razão, tanto do ponto de vista sentimental, como do de pensamento político. Nada os desmentia nas opiniões do Imperador e em seus métodos de govêrno; teria sido a solução verdadeira, real e científica do problema político, evitando todos os inconvenientes da inexperiência dos dirigentes improvisados em 1889.

Após seu apeamento do trono, D. Pedro teve ocasião de revelar seu desprendimento absoluto do poder e de formas de  p343 govêrno: por sua ordem, os diplomatas imperiais continuaram a representar o país, servindo e trabalhando pela República; mais de uma vez, consultado por amigos íntimos e partidários, respondeu que se o Brasil novamente o chamasse a serviço, voltaria a prestar ao país os frutos de sua experiência, sem nunca mencionar como razão de recusa a diferença de instituições.

De fato, a República, em sua Constituição, deu a melhor das respostas à crítica unânime dos partidos monárquicos quanto ao Imperador, no tocante ao seu muito acusado e malsinado poder pessoal, o Poder Moderador. Em nossa prática real, não serão os limites dos podêres presidenciais um alargamento, sistematizado e orgânico, embora benéfico, do poder pessoal de monarca? Em suma, o Império não caiu em virtude do ataque levado ao trono pelos republicanos: caiu, porque não encontrou defensores em seu último momento.

Vindo das profundezas de nossa história, no período crítico, o combate foi mantido pela desafeição generalizada dos fazendeiros, dos católicos e especialmente do clero, e das fôrças armadas nacionais; pelo menos, entre as minorias audazes da sociedade, aptas e decididas a imporem sua vontade.

Nos últimos momentos, Benjamim Constant Botelho de Magalhães tornou‑se o líder moral do movimento. Deodoro foi a fôrça real e o instrumento promotor da realização. Floriano Peixoto, contudo, teve o papel mais importante, pois já êle consolidou e tornou definitivo o regime, que estava sendo dissolvido e desintegrado pelas gestões inábeis de seus predecessores.

A fatalidade histórica, ἀνάγκη eterna, havia pronunciado o destino da monarquia.

De 1889 a 1894, tal foi a vida do país; e ao nome de Floriano está inseparàvelmente ligado o triunfo da fórmula nova. Ainda presidiu à eleição de seu sucessor, um civil, o senador Prudente de Morais, cuja escolha só foi possível porque seu predecessor havia trabalhado e sofrido e sacrificado sua saúde até ficar mortalmente ferido, para assegurar a vitória da Constituição Republicana.

Havia começado uma era nova da história do Brasil.


Nota do Thayer:

a O almirante norte-americano Yates Stirling, que, quando ele era um jovem tenente naval viu‑se envolvido pessoalmente quando seu navio estava no Rio, dá muitos detalhes interessantes da Revolta da Armada em sua autobiografia: Sea Duty, pp21‑27.


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Página atualizada: 25 Out 14