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Capítulo 3

Esta página reproduz um capítulo de
Formação Histórica do Brasil
de
João Pandiá Calógeras

Companhia Editora Nacional
São Paulo, 1966

O texto é de domínio público,
exceto para meus anotações.

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e la creio livre de erros.
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Capítulo 5

 p62  Capítulo IV

Rio de Janeiro, capital da monarquia portuguêsa

De 27 a 29 de novembro de 1807, durou o embarque de D. João, regente em nome de sua mãe D. Maria I, demente desde a morte de seu espôso D. Pedro III. Com a Família Real viajava numerosa comitiva, e o plano era transferir para a América a sede do govêrno luso.

No dia seguinte aos últimos trabalhos de embarque, entrava Junot em Lisboa, à frente das fôrças francesas invasoras. Não encontrou oposição.

Em tôrno dêsses acontecimentos se formou uma lenda de fuga pura e simples, vergonhosa e covarde. E, entretanto, se tratava de executar um plano madura e polìticamente delineado, o mais acertado nas condições peculiares de Portugal.

39. Transferência da Família Real para o Brasil. — Quando se evidenciou que, em sua luta de vida e morte contra Inglaterra, Napoleão assentara fechar o desembarcadouro da Grã-Bretanha no continente, através de Lisboa e Portugal, ficou selada a sentença do desaparecimento político de D. João e do reino bragantino. Conseguira a diplomacia joanina, durante anos, adiar o cumprimento dêsse desígnio, e para isso lançara mão principalmente do subôrno que se desenvolveu em largo sistema de compra de simpatias em tôrno do Imperador e na administração imperial, sistema pago pelos diamantes do Tijuco. Já agora, impossível se manifestava recuar o prazo da operação de política hostil ao adversário insular. Após Trafalgar, nenhuma solução  p63 outra se poderia escolher, pois o momento chegara para o govêrno francês de vencer ou de capitular.

A princípio, D. João acreditou que o perigo ameaçador ainda se lograria conjurar, e nesse rumo se exerceram os esforços contemporizadores de Lisboa, com o fito de deixar protrair as discussões até que o tempo as fizesse esquecidas. Em curto prazo, porém, o ministro em Paris avisou o príncipe que as coisas se apresentavam mais graves do que nunca, e que o dilema se oferecia entre ser fiel à tradicional aliança inglêsa e ser expulso do reino, e se tornar aliado de Napoleão, fechar o país à influência britânica e tomar parte não sistema de bloqueio continental.

Não mais se toleraria a política de neutralidade, jogando uma contra a outra as duas nações em luta. Entre a bigorna e o malho, o miserável pequeno reino teria de, em qualquer hipótese, ser esmagado.

Os portuguêses eram, e ainda são bons soldados. O Imperador, conhecedor dos mais autorizados, tinha‑os em alta estima e sempre louvou a Légion portugaise. Como poderia, contudo, o minúsculo Portugal alimentar uma esperança de vitória em um conflito armado contra França e Espanha, aliadas?

Entre o govêrno de Londres, o enviado luso perante o gabinete de St. James, os conselheiros de D. João em Lisboa e o próprio regente, foi sugerida a idéia de transferir para a América do Sul a sede do govêrno e tôda a administração do reino.

Cinco anos antes da Rússia, surgiu tal solução do vazio ante o inimigo. No império dos czares, Pai Inverno (como o apelidavam) atacaria e destruiria o assalto francês à Santa Rússia. Em Portugal, o oceano daria xeque e anularia qualquer conquista, até que a inversão dos destinos viesse auxiliar a nação mais fraca.

Neste ensaio, que sumàriamente compendia acontecimentos dos mais complicados, é impossível explicar por miúdo as alternativas do espírito de D. João. Astuto e tímido, profundo conhecedor das condições e dos interêsses de seu país, benignamente disposto para com seus súditos, era uma mentalidade tíbia e hesitante, apavorado de tudo, incapaz de seguir uma resolução de energia. De seu primeiro contato com os embaixadores de  p64 Bonaparte, Lanes por exemplo, havia ficado um traço de simpatia. Se, em vez de Junot, brusco e rude, o comandante francês da invasão houvera sido o próprio Lanes ou outro de estôfo igual, meio diplomata, talvez o regente se não abalançasse a atravessar o Atlântico.

Até o último momento, esperava o príncipe torturado surgisse qualquer fato imprevisto que lhe permitisse ficar em Lisboa, tanto era seu pavor da viagem oceânica. Consentiu e ordenou que tudo se aparelhasse para a travessia. De como suas ordens foram bem obedecidas, dá testemunho irrecusável o ter singrado a esquadra emigrante horas depois de embarcada a Família Real. Todo o acervo administrativo estava a bordo, arquivos, documentos e papéis de govêrno, e de tal forma arranjados, que, ao desembarcar no Rio de Janeiro, nenhuma falta ou dificuldade especial se fêz sentir, e a faina de dirigir a monarquia continuou ao Nôvo Continente tão normalmente como se estivesse o regente em Lisboa. Que melhor prova exigir da previsão, do longo preparo, e da observância das ordens mais minudentes para organizar o plano de transferência?

Aí se encontra mais um elemento probante da precisão das negociações e das decisões dos Conselhos de govêrno, ao discutirem o problema. Inúmeros documentos, quer oficiais, quer particulares, consonam nesse mesmo asserto. Mas o príncipe, tudo preparado para se realizar a transferência, hesitava e demorava a partida, e evitava de ir a bordo da nau que o haveria de receber, até que lhe chegaram aos ouvidos as novas apavorantes de que Junot estava próximo à capital, prestes a invadi‑la. De fato, a frota ainda estava ancorada no Tejo quando as fôrças francesas marcharam na cidade.

Não há dúvida de que os momentos de embarque do regente, sua atitude lamentável, a confusão, a desordem haviam de impressionar como uma fuga sem dignidade e apavorada. Nem por isso deixava de ser a execução deplorável de um plano político e internacional, prèviamente discutido e fixado em todos os seus detalhes, após madura ponderação de todos os seus aspectos.

Em si, nenhuma novidade era para Portugal a idéia da transferência para o Brasil da sede da administração pública.

 p65  Meado o século XVI, por 1550, Martim Afonso de Sousa aconselhara a D. João III assim proceder. Em 1580, quando Filipe II da Espanha tratava de obter, de armas na mão, sua aceitação por Portugal como seu legítimo soberano, na qualidade de herdeiro do cardeal-rei D. Henrique, era de fato a primeira na ordem dos titulares do direito hereditário D. Catarina, duquesa de Bragança, a mais próxima parenta do monarca falecido. O soberano espanhol tentou convencê‑la e propiciá‑la, pelo oferta de elevar o Brasil a reino independente sôbre o qual ela assentaria seu trono. Após a Restauração de 1640, D. João IV sentira quão fraca era sua posição, e tratou de defender das ameaças que o rodeavam por parte de Castela, e para isso procurou alianças por tôda a Europa. Um dos planos então formados seria casar o desventurado herdeiro da coroa, D. Teodósio, com uma princesa francesa; o casal reinaria sôbre Portugal, enquanto D. João seguira para o Nôvo Mundo e aí fundaria nôvo reino no Brasil. Finalmente, após o terrível terremoto de Lisboa, em 1755, o grande ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, futuro Conde de Oeiras e Marquês de Pombal, teve o projeto de abandonar a Europa e criar no Brasil um poderoso império. A invasão francesa de 1807 chamou à existência um plano já velho de mais de séculos.

Nada mais é mister acrescentar para tornar evidente quão superficial é o conceito dos que opinam ser mera evasão ou pânico, tal ato de importância capital para ambos os países.

Em qualquer caso, significaria vitória. O oceano dominado pelas frotas britânicas era um obstáculo que o poderio napoleônico não lograria transpor. Mesmo vencida no continente, era contudo invencida e inconquistável a Grã-Bretanha. Se o genial corso triunfasse finalmente na cruenta luta, a monarquia portuguêsa na América do Sul permaneceria intata como aliada do reino insular. Se uma reação se iniciasse na Península, as tropas portuguêsas, de combinação com os exércitos inglêses, começariam a expelir os forasteiros do território lusitano. Assim aconteceu realmente, e constituiu a campanha peninsular.

O momento, portanto, era crucial, para a metrópole, tanto como para a colônia, em sua história conjunta.

 p66  40. A recepção no Brasil. — Tais haviam sido os progressos do Brasil; em tão justos têrmos se formulavam as queixas e as exigências suas; sofrimentos locais, derivados do sentimento ferido por uma imposta inferioridade, torturavam tão doridamente os colonos, que tanto a côrte como o govêrno receavam ser recebidos com escassa hospitalidade, senão com hostilidade.

Falharam tôdas essas previsões pessimistas. Feridos e queixosos, embora, da indiferença, da condescendência escarninha e arrogante com que os tratavam os portuguêses da Europa, ainda para êles gozavam, monarquia e monarca, de prestígio grande demais para que se pudesse apagar o júbilo imenso, vindo do fundo da alma que lhes inundava o coração, em virtude da presença de el‑rei no Rio, e da ascensão da cidade à categoria de capital de todo o reino. Apesar dos desconfortos sem conta e das inconveniências e dos sacrifícios pessoais que lhes eram infligidos por subalternos cortesãos, a insultarem e chacotearem os colonos, impondo‑lhes despesas inauditas para seu estalão de vida; apesar de tudo, de todos êsses e de outros aborrecimentos, brasileiros e Brasil nunca esqueceram a iniciativa de D. João e os benefícios trazidos à antiga colônia.

A presunção dos cortesãos, a impertinência vazia dos funcionários reinóis, tudo se desprezava, se ridicularizava ou se odiava. O regente, ao contrário, era amado e respeitado. Pelas ruas que atravessava, ou nas estradas que percorria, as gentes se ajoelhavam diante dêle. Sua conduta benévola, bondosa e chã para com os humildes conquistava‑lhe todos os corações, nessa população acostumada a ser destratada pelos europeus, ou, pelo menos, sofrer vexames e injustiças.

Em Portugal, o príncipe não fôra amado, salvo por poucos íntimos. Sua espôsa era a eterna cabeça de tôdas as conspirações contra o poder régio, a planejar seu destronamento, quiçá sua morte. Graves suspeitas, pelo menos, pesavam sôbre ela, nesse particular. D. João a temia e odiava por igual, por êsses motivos, como também por sua incontinência. Viviam vida separada, e só compareciam em público juntos, quando assim impunham as cerimônias e a etiquêta.

Ao desembarcar no Rio, logo sentiu o ambiente de gratidão pública que o cercava e lhe prodigalizava respeito e afeto.  p67 O Brasil o conquistou, e dêle fêz um amigo, o melhor e o mais avisado de todos os servidores do Estado. Pela vez primeira, o país ia sendo governado como unidade autônoma, e não exclusivamente como uma arca de tesouros ou mera fonte de recursos para as necessidades metropolitanas.

Com a rainha, D. Carlota Joaquina, ocorria precisamente o inverso. Era geralmente odiada, tão íntimo, forte e rude era seu desamor pela terra, antipatia que não escolhia têrmos para se externar, e se manifestar. Diante de sua carruagem, galopavam dois batedores, soldados de cavalaria que obrigavam os transeuntes a se ajoelharam diante da soberana em passeio: quem não obedecesse imediatamente à ordem, sofreu castigo pronto, a relhadas e mesmo a pranchadas de espada.

De uma feita, Thomas Sumter, ministro dos Estados Unidos no Rio, encontrou a princesa, reconheceu‑a e polidamente a cumprimentou com o seu chapéu. Os cavalarianos, a galope, que não conhecia o diplomata, o cercaram, ameaçadores e com a menção de usarem dos chicotes. Sumter, tranqüilamente, puxou de um par de pistolas e avisou os desabotinados soldados para que se retirassem, pois estava disposto a matá‑los se continuassem a se aproximar. O escandaloso incidente teve de ser objeto de solenes desculpas oficiais. Depois disso, a escolta da rainha teve de se coibir em seus excessos.

Êste detalhe dá a medida do gênio e dos modos da infanta espanhola casada com o bonachão do príncipe regente. Mera justiça, entretanto, é dizer quanto ela era superior ao espôso em inteligência, energia, coragem, e dedicação à seus amigos. Era um leader, um condutor de homens natos. Durante trinta anos, até a sua morte, foi o chefe real dos absolutistas de Portugal: os mais altaneiros guias do partido, por mais famosos que fôssem, curvavam‑se ante sua direção. Combatia, sem tréguas nem temor, por seu ideal político, a restauração e o pleno e público reconhecimento da monarquia de direito divino.

D. João era querido, mais também era carinhosamente e tolerantemente desprezado por sua fraqueza e sua covardice. Com sua opinião ninguém se preocupava, e isto o levava a esconder seus sentimentos, bem como a procurar vencer, adiando as soluções, lançando seus conselheiros uns contra outros, um ministro  p68 em oposição a seus colegas, dividindo para reinar. Curioso é que, na maioria dos casos, lograva realizar seus intuitos, pela fôrça tremenda da apatia e do adiamento. Triunfava, cansando seus adversários.

Impetuosa (a si própria chamava gitana), de ânimo forte, voluntariosa, amiga segura, protetora indefesa e sem limites de seus sequazes, temível em suas animadversões irrestritas, leal a seus ideais, corajosa e nunca desalentada pelo insucesso, pelos obstáculos ou pelos perigos, D. Carlota Joaquina exigia e dispunha da obediência imediata e da disciplina indiscutida de seus partidários; correlatamente, era odiada por seus adversários.

É provável que, em seus sentimentos, a primeira linha pertencesse ao ódio e ao desprêzo que nutria pelo marido. Nunca se sentiu portuguêsa de coração: viveu e morreu infanta de Espanha, dedicada a seu irmão D. Fernando VII.

Tal antagonismo, agudo desde os primeiros anos de seu consórcio, foi crescendo com a perpassar do tempo. Em Portugal, perto de sua própria pátria, Carlota Joaquina se sentia uma estrangeira: tinha partidários convencidos, seguidores incondicionais. No Brasil, afastada de tudo e de todos, sem ponto de apoio para sua ação, sentia‑se fraca e desarmada. Assim mesmo, e por sua mesma falta de poder, ia avultando seu ódio à terra onde tais coisas eram possíveis. Não obstante, desde o início de seu estágio na América, começou no Continente uma política sua, contra o espôso e os interêsses portuguêses.

41. Organização do govêrno do Rio. — Semelhante fato assumia importância capital, pois, ao desembarcar na antiga colônia, o regente deparava para seu govêrno com problemas novos e inteiramente desconhecidos.

Até então, a América portuguêsa havia trabalhado em benefício da metrópole. As capitanias estavam com seus orçamentos equilibrados, as receitas pagando os gastos. A imigração da Côrte rompeu essa equivalência de réditos e de despesas, pois todo a pêso da administração integral do reino vinha recair sôbre o contribuinte brasileiro. Nada se poderia esperar de Lisboa. A invasão destruíra ou perturbara todo o mecanismo administrativo e arrecadador. O quase nada que sobrevivera tinha mais que fazer  p69 de que atender a serviços fora de Portugal. As taxas, sempre atrasadas em seu pagamento, apresentavam agora aspecto caótico, como era natural: como cobrá‑las com um exército francês acampado no país e a perturbar tudo com seus excessos e suas requisições? Além do que, do Rio se deveriam remeter recursos para as tropas que combatiam a Junot.

Por outro lado, o Rio de Janeiro não contava mais de 130 000 habitantes, de costumes inteiramente coloniais e atrasados. Higiene ausente; falta de esgotos; nenhuma remoção de lixo da cidade; nenhuma noção de tais necessidades. Estalão de vida muito modesto e baixo. Festas, pouco numerosas, principalmente religiosas: procissões, Te Deum, sermões. Excepcionalmente, o vice‑rei dava uma recepção. As casas eram ocupadas por seus donos. A escravatura era o alicerce de quase todos os serviços, quer públicos, quer particulares.

De um momento para outro, tudo isso teria de ser modificado, para o fim de receber e alojar e sustentar alguns milheiros de forasteiros, habituados a um gênero de vida bastante mais exigente. Instigação ao progresso, é certo, mas forte desconfôrto e imprevista dificuldade no momento.

Primeiro obstáculo a vencer, seriam os recursos e o problema da morada.

O entusiasmo produzido pela chegada da Família Real abriu caminho para se realizarem os mais custosos sacrifícios, em matéria de incômodos. Em parte por ordem do vice‑rei Conde dos Arcos, em parte por espírito de júbilo patriótico, esvaziaram‑se casas para serem postas à disposição dos recém-chegados, indo os proprietários alojar‑se em outros prédios inferiores; para outros imigrantes de graduação arranjaram‑se pensões. Finalmente, foi possível conseguir teto para os retirantes voluntários vindo da metrópole.

Por todo lado, ouviam‑se queixas, resmungos e suspiros: os cortesãos sentiam a diferença entre as imposições da nova residência e os usos correntes de sua pátria européia. O elemento local, fora de seus cômodos, ou em casas superlotadas pela invasão dos ádvenas, impostos e sem convite, lamentava a perda de suas pristinas larguezas de existência. Pouco a pouco, entretanto, foram‑se  p70 acomodando as coisas, e os apertos se toleraram melhor ou mesmo gradualmente desapareceram. O tempo foi atenuando os atritos.

O problema dos recursos, contudo, era o mais custoso de solver.

Tratava‑se de mudança brusca, inesperada e enorme para o Brasil. Um dos primeiros atos do regente foi abrir os portos da terra e libertar o comércio da obrigação de só se efetuar com a metrópole. Cessou tal monopólio.

Muito se tem escrito essa medida, e seus principais autores têm recebido elogios sem conta. Talvez, embora merecidos, haja sido ultrapassada a justa apreciação dos fatos. Era inevitável assim acontecesse. Desde a transferência da sede do govêrno para a América do Sul, Portugal perdera seu ascendente metropolitano. Invadido e talado pela fôrça de Junot, não mais poderia existir quer a navegação, quer o comércio: os navios britânicos policiando os mares capturariam os barcos vindos de portos sob o guante da conquista napoleônica. Como fechar os embarcadouros sôbre a Grã-Bretanha, cuja projeção e cujo auxílio haviam tornado possível a execução do plan político a que obedecera a vida ao Nôvo Continente? Além disso, donde viriam as mercadorias que Portugal dantes mandava à sua colônia? Para onde iriam os lenhos que transportavam as exportações brasileiras?

Estava no regaço das coisas inevitáveis, fatais como conseqüência da mudança da sede do govêrno, a abertura dos portos americanos. Dependia dos acontecimentos e não da vontade humana ou de sua intenção. Parece, portanto, algo frívolo, investigar a quem cabe o mérito da idéia. O fato deu‑se, porque não podia ser de outra forma. Era forçoso criar o comércio com as demais nações, para se não suspender a vida nacional e a satisfação das necessidades já implantadas nos hábitos nacionais. Ainda daí advinha a possibilidade de coletar impostos de importação e taxas outras, que constituíam a principal fonte de réditos para o Erário Régio. O mérito, na realidade, consistiria em ter reconhecido o aspecto compulsório do problema e, sem demora, lhe ter dado solução pelo alvará de 28 de janeiro de 1808, libertando o comércio.

 p71  Era de natureza especial a autoridade do regente. Deixava agir seus ministros. Em regra, tais conselheiros não concordavam em suas opiniões, e o príncipe apreciava tais divergências por lhe permitir equilibrá‑los e, entre os pareceres, escolher aquêle que correspondesse à sua própria vontade, sempre mantida secreta. Realmente, havia conflito permanente de pontos de vista, de idéias e de métodos. De uma feita, Von Eschwege, geólogo e viajante de grande fama, apontou para um dito popular característico da situação de três dêsses ministros: compara‑os a três relógios, dos quais um andava sempre adiantado, o outro atrasado, enquanto o terceiro vivia parado.

D. João tinha de promover iniciativas de duas sortes: na política interna, e na política externa.

42. As necessidades internas. — Em sua nova capital tinha de reaver o tempo perdido. Sentia agora que seus vice‑reis o não haviam plenamente informado das condições reais do país, e que mesmo em alguns casos fôra enganado. Os tempos áureos da indústria extrativa eram coisa do passado. A agricultura, com todos os seus corolários, via‑se asfixiada pela falta de crédito, pela ausência de uma legislação adequada, pois a vigente se baseava na idéia falsa da riqueza das minas e de suas necessidades. Os elementos locais poderiam auxiliar na solução de mais de um ponto difícil. Havia sacerdotes, legistas, funcionários que tinham segundo os cursos de Coimbra. Alguns tinham viajado pela Europa, e achavam‑se no mesmo nível do pessoal que viera de Lisboa. Possuíam, além do mais, uma incontestável superioridade: conheciam a terra.

Deu comêço imediato a seu programa de melhoramentos e de novas fundações, no Rio como em outros pontos do país.

Desde 1669 fôra aberta no Rio uma aula de fortificação. O primeiro núcleo do futuro arsenal de guerra data de 1793. Na segunda metade do século XVIII, surgiram numerosas academias literárias de vida efêmera. Em 1739, dois seminários preparavam funcionários e sacerdotes. Seus programas, contudo, eram resumidos e já se não prestavam plenamente às exigências crescentes da colônia.

O ano de 1808 foi o período crítico e decisivo. Logo após seu desembarque, o regente promoveu a fundação de colégios  p72 de cirurgia e medicina, no Rio e na Bahia, e de uma academia de cadetes de marinha. Uma Imprensa Régia começou a funcionar. Nos anos subseqüentes, 1810 e 1811, abriram suas portas uma escola de comércio e uma academia de Guerra. Em 1814, foi posta a disposição do público uma livraria, célula inicial de nossa atual Biblioteca Nacional. O Museu Nacional criou‑se em 1818, bem como a Escola de Belas Artes. Com o fito de melhorar os métodos agrícolas, de introduzir e aclimar novas plantas, em 1808 se deram os primeiros passos para a criação de nosso Jardim Botânico de hoje. Revogaram‑se leis, regulamentos e demais atos, que traziam empecilhos à atividade industrial nas capitanias mineradoras. Tudo se envidou para proteger e desenvolver as energias iniciadoras.

Uma das mais graves dificuldades da época era a ausência de crédito. Portugal, em tempos normais, não possuía dinheiro para dar ou emprestar. Menos, ainda, enquanto se estorcia sob a prepotência dos invasores franceses. A Inglaterra, por demais preocupada com seus próprios apertos, financeiros e outros, da guerra contra Napoleão, só protegia com seus subsídios os governos que, êles também, moviam a mesma luta ou nela tomassem parte. Só restava aberto um único caminho livro: a emissão de papel-moeda. Em 1808, fundou‑se o primeiro Banco do Brasil. Era um mecanismo incógnito, e tinha de fazer face a tôdas as falhas e obstáculos inerentes a semelhante desconhecimento.

Das ações, a soma máxima de cem contos não havia sido vencida até dezembro de 1809. Em vez de deixar o banco fazer seu negócio normal, o govêrno multiplicava exigências de dinheiro para tôda sorte de gastos. Nem sempre a gestão do instituto foi merecedora de louvor, ou mesmo se isentou à pecha de prevaricação; em casos raros, seja dito com justiça.

Em vésperas da volta ao Reino, pràticamente tôda a emissão se achava em mãos do monarca, da Família Real, dos cortesãos a regressarem a Lisboa ou dos funcionários que seguiam a reassumir sua funções na Europa. Tôda essa massa de bilhetes foi apresentada para trôco ao estabelecimento de crédito, e teve de ser resgatada em moeda metálica, ouro e prata. Da noite para o dia, caiu a caixa a 200 contos. Ainda estava por ser feita a educação  p73 do comércio local: uma década mal bastou para tornar corrente o uso da nota da banco.

Vinha embaraçada a circulação dêsse papel pelo fato de se restringir o curso a áreas limitadas: Rio, Bahia e São Paulo. D. Pedro, o primeiro imperador do Brasil, tinha má vontade a êsse aparelho, que não compreendera bem; por isso, lhe moveu crua guerra. As necessidades costumeiras do comércio eram atendidas sem dificuldades, mas os reclamos do govêrno impunham crescentes emissões de bilhetes.

Quando, após vinte anos dessa luta titânica contra a hostilidade oficial, houve de se fazer o reembôlso da circulação fiduciária, que se elevava a cêrca de 19 174 contos, em conseqüência da ordem legislativa de 1829 para liquidar o banco, ficou evidente que o total correspondia quase precisamente à dívida do Tesouro à caixa bancária, no valor de 18 301 contos.

Foi tal liquidação um dos mais formidáveis erros cometidos na administração financeira do Brasil. Apesar de erros e faltas, o banco havia sido a fonte única de crédito para a atividade do país, e seu esfôrço nunca se desmentira nem falhara. Completou a prova do asserto o resultado da liquidação. É sabido que vender títulos, apurar valôres tocados pelos descrédito de uma catástrofe comercial é tarefa ingrata; ainda assim, pagas tôdas as dívidas, restabelecida a ordem nas contas do estabelecimento, os acionistas receberam ainda 90% de seu capital. Resultado lamentável, durante anos privou‑se o Brasil de um órgão de financiamento fiduciário.

43. As dificuldades internacionais. — Outra série de graves dificuldades provinha dos laços políticos por demais íntimos existentes entre Portugal e Inglaterra. Eram as duas nações aliadas seculares desde o tratado de Methuen de 1703, e essa aliança havia resistido a provações duras. Na guerra ainda reinante entre a Grã-Bretanha e a França, a princípio neutro, depois ao lado do reino insular, Portugal havia demonstrado sua solidariedade com seu antigo amigo e associado.

No gabinete de D. João, dividiam‑se as simpatias. O regente não desgostava da França, mas a corrente mas forte, chefiada por D. Rodrigo de Sousa Coutinho, futuro Conde de Linhares,  p74 batia‑se pela Inglaterra, sua política e sua colaboração. Era forçoso aceitar êste ponto de vista, desde que o plano de transferência da Família Real para a América fôra organizado em Londres. Fêz‑se o transporte em vasos portuguêses, mas uma esquadra da frota britânica, sob o comando de Sir Sidney Smith, auxiliou e protegeu a viagem dos retirantes. Dentro em prazo curto, fôrças inglêsas desembarcaram em Portugal, e cooperaram com as tropas nacionais nas hostilidades, desde logo abertas, contra o exército de Junot, e na expulsão dos soldados napoleônicos do território invadido.

Tanto D. João como Linhares mostravam‑se extraordinàriamente gratos por essa intervenção tão útil quão oportuna. Sua simpatia primitiva cresceu e ascendeu a níveis inesperados; agiu nêles, de modo a lhes arrancar anuência a medidas que tinham de trazer conseqüências, sob o influxo das quais o Brasil gemeu durante quarenta anos. Como atenuante, talvez se possa alegar, para diminuir a gravidade do êrro econômico e político cometido, que o govêrno lusitano se achava inteiramente nas mãos da Inglaterra, e entre esta e a ameaça francesa figurava como casca de noz entre o malho e a bigorna.

O bloqueio continental de Napoleão, por um lado, as ordens em conselho inglêsas, por outro, faziam dos oceanos um lago britânico, no qual nenhuma voz se fazia ouvida além do gabinete de St. James. Portugal só podia pôr em linha raros e antiquados vasos de guerra; sua marinha mercante era de categoria inferior e pouco numerosa: teria de engolir seu natural orgulho, e tolerar o que não tinha remédio senão agüentar.

Finalmente, argumentos, pedidos ou exigências, eram interpretados e presentes ao regente e seus ministros pelo célebre Lord Strangford, um diplomata adepto da big-stick policy, perante o qual tremia acovardado o pobre D. João, que ignorava e nunca cuidou de compreender ou de experimentar o que significava a justa resistência à prepotência.

Agindo por essa forma, o emissário britânico logrou extorquir em 1810 da pusilanimidade governamental mais de uma concessão, equiparando as duas marinhas mercantes: comparando a desproporção das duas atividades comerciais; se evidencia que era um acôrdo unilateral, e tanto mais assim, quanto se revelou  p75 mais tarde que o gabinete não tinha podêres legais para conceder aos barcos portuguêses os favores e as taxas que o diplomata havia prometido estender‑lhes.

Por outro lado, alcançou obter no Brasil, para importações das Ilhas Britânicas, direitos de alfândegas menores do que os próprios impostos pagos pelas mercadorias metropolitanas, fixando destarte concorrência estranha ao interêsse da mãe-pátria, e ainda com a concessão de privilégio análogo ao das antigas Capitulações orientais, a célebre conservatória, pela qual tinham os súditos britânicos o direito de ser julgados por juiz especial, o juiz conservador, em todos os seus litígios.

Conseqüência da propaganda abolicionista do tráfico de Wilberforce nos meios políticos inglêses, a abolição do comércio de negros africanos no Brasil foi imposta ao regente, que relutava a adotar tal medida; em acôrdo subseqüente se fixaria o prazo a partir do qual se tornaria operante a ordem proibitiva. Finalmente, uma convenção foi assinada para se criar, mediante contrato, a primeira linha de navegação regular entre o Brasil e o Reino Unido.

Nesses convênios se encontram os pontos de partida de inúmeros dissídios e atritos, que, com o decorrer do tempo, chegaram quase ao rompimento aberto de hostilidades. De fato, D. João havia até certo ponto comprometido a libertade do comércio do Brasil, pelo êrro de conceder um regime excepcional para as importações inglêsas, assim como ferira a soberania nacional admitindo em território nosso juízes forasteiros e tribunais para julgamento de nossos patrícios; e, bem assim, por haver permitido que fôrças navais e leis inglêsas forçassem, em assunto de tráfico, competentes para capturar, julgar e punir tripulações de barcos portuguêses.

Desde logo começou a se sentir o influxo de tais fraquezas. Em 1816, já após a queda de Napoleão e normalizada a situação da Europa, enquanto a cabotagem se realizava por meio de navios nacionais, menos de metade do tráfego oceânico ultramarino se faria sob o pavilhão das quinas e o restante representava o quinhão britânico.

44. Os progressos realizados. — Ainda assim, progredia o país. Novos mercados, novos meios de transporte, estimulavam a  p76 produção. O café já tendia a constituir‑se uma indústria basilar da América portuguêsa, juntamente com o açúcar, os couros e peles, tabaco e algum algodão. Em 1822, as exportações de tais mercadorias eram, em pêso, de 24 318 304 libras de café, 45 644 800 libras de açúcar, e 5 208 000 libras de algodão. Decaíra muito a indústria mineradora, embora ainda houvesse alguma atividade na exploração.

Contudo, um sintoma grave estava aparecendo, quanto à má administração econômica da terra: a queda das cotações cambiais. Era a paridade legal a de 67½ pence por mil-réis. Já, em quanto havia caído a taxa a 47 d, queda tanto mais significativa, quanto na segunda década do século ascendera a 70 d. A vida comercial achava‑se mais ou menos equilibrada em tôrno de 8 500 contos no lado das importações, e aproximadamente outro tanto no das exportações. A causa dominante da desconfiança assim revelada no mercado monetário residia nos receios infundidos pela política do govêrno.

A guerra peninsular de reconquista de Portugal era um dever, e não poderia ser evitada. Parte, apenas, dos gastos seria suportada pelos contribuintes, pois a Inglaterra nem só subsidiava o reino, como tinha mandado suas próprias tropas combater ao lado das lusitanas.

45. Atritos iniciais no Prata. — Na América do Sul, entretanto, o mesmo conflito de sentimentos e de interêsses, reinante na Europa, instigava uma política de engrandecimento do Brasil, que levava, por suas intervenções a Sul do continente, a entronizar a desordem nas finanças nacionais.

Para complicar ainda as coisas, e tornar o problema aparentemente insolúvel e causar despesas que o Tesouro não comportaria, avultava o fato de que não existia unidade no rumo internacional seguido: três políticas inconciliáveis disputavam a primazia na foz do Prata, a de D. João, a de D. Carlota Joaquina e a da Inglaterra. Além disso, os conflitos locais separavam os partidários em godoscriollos. Os primeiros, castelhanos vindos da Península; os segundos, já nascidos e criados na América; alguns, sonhando já com a Independência; a maioria, fiel ao trono bourbônico de Madri.

 p77  A campanha da França e Espanha, aliadas, contra Portugal, conduzira à ocupação da Península pelas fôrças de Napoleão. Estas haviam promovido tumultos e rixas, e Murat, seu comandante, agindo por ordens e instruções do imperador e auxiliado pelo herdeiro presuntivo da coroa, o príncipe das Astúrias, o futuro D. Fernando VII, aproveitou o pretexto para tornar inevitável a abdicação do reinante D. Carlos IV. No ato de Baiona, a abdicação implicava a destruição da dinastia, e daí decorreu a entronização de José Bonaparte, irmão do corso imperial.

O vice‑reino de Buenos Aires, a exemplo das províncis espanholas, revoltadas, não reconheceu o nôvo rei, decidiu obedecer ao único herdeiro legal de coroa, D. Fernando VII. No Rio, D. Carlota Joaquina, movida por seu amor fraterno e pelos interêsses dinásticos, apresentou sua própria candidatura à regência como a mais próxima herdeira do trono, na ausência do irmão. Seu espôso, desde a tragicomédia de Baiona e a ascensão de José Bonaparte, era o aliado natural de D. Fernando. Fêz‑se imediatamente causa comum com a infante espanhola, e instruiu seus ministros para agirem de acôrdo com seus desejos. Isso, ostensivamente: pois nunca olvidou que seu próprio dever era servir a Portugal.

Por lei, tinha D. Carlota Joaquina o direito de reclamar a regência. Para ela, começaram a voltar‑se os olhos das províncias e das colônias revoltadas contra o intruso e detestado francês. México e Rio da Prata eram os primeiros nessa campanha. Na Espanha, pròpriamente, onde a rebeldia era dirigida pelas Juntas, sob a orientação superior da Junta Nacional de Sevilha, a idéia não gozava da mesma simpatia: não possuíam as filhas de Carlos IV o favor público. Além do que, o pendor geral manifestava‑se em prol de uma monarquia constitucional, enquanto eram conhecidas as convicções inabaláveis da família Bourbon, absolutistas intransigentes. A Inglaterra, também, cuja influência era decisiva na Península, não favoneava tal forma de govêrno, argüida de prepotente.

Quando, logo após o destronamento do rei de Espanha em 1808, Buenos Aires enviou um emissário ao Rio de Janeiro para indagar da disposição de ânimo de D. Carlota Joaquina quanto a uma regência constitucional no vice‑reino, nem só expulsou ela  p78 o enviado, como o denunciou como rebelde ao vice‑rei em exercício, D. Santiago de Liniers. Desde então começou a desmaiar a esperança concentrada na pessoa da infanta, como possível solução da vacância do trono durante a detenção de Fernando VII: tinha‑se por demais claramente evidenciado e tornado público o espírito reacionário da candidata à regência.

Em Buenos Aires, achava‑se muito tensa a situação. Os castelhanos imigrados desprezavam os criollos. Êstes queriam ter uma Junta própria, como as demais províncias metropolitanas; enquanto os primeiros, de acôrdo com o representante da Junta de Galícia, apenas desejavam ter nôvo vice‑rei designado pelas autoridades espanholas.

As manobras do Rio de Janeiro haviam ainda aumentado a confusão dos pareceres. Na primeira metade de 1808, o cabildo de Buenos Aires tinha recebido ameaças, caso se não submetesse à exigência de se incorporar à monarquia portuguêsa. Com a maior indignação, fôra a sugestão repelida tanto pelo cabildo como por Liniers.

Mas a insurreição generalizada de Espanha havia mudado a face das coisas, e feito aliados contra o inimigo comum de Napoleão os antigos adversários tradicionais da Península. Em todo caso, não se podia exigir do multissecular desafeto de Buenos Aires confiança ilimitada. Os acontecimentos, ali, não se mostravam simples: espanhóis contra criollos; aquêles a conspirarem por tornar a possuir a supremacia local que haviam perdido por sua própria imperícia no meneio dos monopólios comerciais por êles detidos, e por suas pretensões políticas excessivas: funda agitação liberal, criada e mantida pela maçonaria; a experiência feliz de govêrno autônomo, posta em prática por Liniers. De tantos fatôres em presença resultara a convicção de que o maior perigo consistiria no triunfo dos espanhóis imigrados.

Uma solução existia, e próxima, legal sem dúvida: a regência de D. Carlota Joaquina. Melhor seria fiar nas promessas que ela multiplicava aos porteños mais influentes. Já não havia ela livrado o vice‑reino, conjurando a ameaça de missões perigosas, desconhecidas, qual a entrepresa militar do general Curado, enviado do Rio em enigmática visita a Buenos Aires, onde, aliás, não logrou chegar? Com ela como chefe de govêrno, de um  p79 govêrno liberal qual o desejavam, perderiam caráter ameaçador as injunções do Rio. A ninguém se afigurava possível solução que não fôsse monárquica, e a infanta ainda era a mais aceitável e legal.

Buenos Aires refervia de agentes, tanto ostensivos como confidenciais, de tôda sorte e categoria, pertencentes a tôdas as classes sociais; alguns dêles, merecedores de fé, mas a maioria meros especuladores, impudentes, pagos por todos os partidos, servindo e traindo a todos.

Momento houve em que D. Carlota Joaquina talvez pudesse ter sido proclamada regente, se presente estivesse em Buenos Aires. Permitiu‑o D. João, a princípio. Contramarchou, ao depois. O motivo do recuo? Três podem ser apontados: o receio do regente de ser destronado pelas intrigas e pelo ódio de sua espôsa; o terror dos cortesãos portuguêses, quanto às aversões vingativas da infanta; a oposição tenaz do Lord Strangford, por causa da política seguida pela Inglaterra.

Tôdas essas razões eram provàvelmente reais, mas a preponderante seria por certo o veto britânico. Contra êle, nada poderia fazer Portugal. E tão bem se acomodava com os sentimentos pessoais de D. João relativamente a sua mulher! . . .

Novamente seguiram emissários para o Rio, a conferenciarem com a princesa. Desiludidos, voltaram para trás. Liberalismo, por parte dos criollos, e absolutismo, por parte da real gitana, não podiam razoàvelmente trabalhar juntos. Dos princípios de 1810, data a decisão do pleito, contra a regência de D. Carlota Joaquina. Não desapareceu de súbito: ainda se falou no caso por algum tempo, e episòdicamente. De fato, era assunto morto e enterrado.

46. O movimento independentista da América espanhola. — Êsse ano de 1810, "el año diez" como o denominam historiadores sul-americanos de origem castelhana, foi realmente o ponto crítico da agitação da Independência.

Do Gôlfo de México ao Cabo Horn, tôdas as antigas colônias de Castela sofreram os impulsos decisivos que puseram em movimento o problema separatista.

Na Argentina, as novas do avanço francês na Península e da derrota dos insurgentes chegaram a 13 de maio: foram a  p80 gôta que fêz transbordar a medida. A 25, uma reunião geral dos notáveis votou a deposição do vice‑rei nomeado por Sevilha, embora se prometesse e protestasse obediência a Fernando VII, e organizou uma Junta local formada dos cidadãos mais prestantes. Era o golpe mortal nos projetos de regência.

Duas pequenas províncias do antigo vice‑reino foram as únicas a permanecer fiéis a Madri: Paraguai e Uruguai. A primeira, isolada no sertão, conseguiu tornar‑se absolutamente independente em 1811. Uruguai ficou só, e manteve o contato com a infanta.

Via‑se D. João, destarte, arrastado para a margem esquerda do Rio da Prata, com auxiliar e elemento de fôrça dos planos de D. Carlota Joaquina. Contudo, o golpe de Lord Strangford contra qualquer intervenção no Prata lhe havia aberto os olhos; não agiu de ponto de vista legitimista, para restabelecer a autoridade do rei de Espanha. Orientou sua rota pela política tradicional de Portugal, no sentido de traçar a fronteira natural do Brasil pelo rio Paraná e pelo rio da Prata. Mais uma vez, provava D. João que não havia entendido a posição da Inglaterra.

O sistema de comércio espanhol com suas colônias era grande obstáculo para a política expansionista da Grã-Bretanha, pois consagrava o monopólio da metrópole. Para a monarquia insular, o único método aceitável era a libertade de comércio, e, por isso, era Londres levada a ajudar, ou pelo menos não criar empecilhos, à independência. Com Portugal, eram outras as razões. Era o reino mais um vassalo do que um aliado; se, per novos empreendimentos felizes, crescesse êle em tamanho e importância, rôta ficaria a balança entre os dois países, e tal mudança não serviria a nenhum dos alvos da política britânica. Além do que, com uma regência de D. Carlota Joaquina, e talvez uma nova coroa em seu favor na América do Sul, teria forçosamente de se instituir uma política matrimonial de enlaces entre as duas coroas, e, para o futuro, todo o continente poderia vir a formar um imenso império, sem paralelo no passado. Tal possibilidade era positivamente contrária aos interêsses inglêses.

Por isso, estadistas inglêses não poderiam senão favorecer a tendência independentista da Sul América e auxiliar indiretamente seus defensores, assim como a existência das novas unidades  p81 políticas. Nesse sentido se exerciam todos os esforços da Inglaterra, em absoluta reserva, enquanto não o pudesse fazer às claras.

47. A posição do Brasil. — D. João não poderia contar com Londres para lhe proteger as miras imperialistas, assim como Espanha não lhe conseguiria invocar o auxílio para submeter as colônias revoltadas e insurgentes. Previa a Inglaterra o perigo de se formar um bloco latino, coeso, sólido, homogêneo apesar de diferenças pequenas e secundárias, a estender‑se da Flórida, da Califórnia e do Texas até o Cabo Horn. Estava em jôgo a supremacia, o primado britânico.

O regente português não compreendia a situação, e considerava‑a tão sòmente do ângulo estreito das conveniências de seu reino: a infanta, sua mulher, amparava Montevidéu, em guerra com Buenos Aires, e agia em benefício dos interêsses de seu irmão, D. Fernando VII; tropas buenairenses já estavam no Uruguai, assediando‑lhe a capital e ameaçando a capitania brasileira de São Pedro do Sul.

Aí estava uma razão ou um pretexto para ter no Rio Grande seu próprio exército, e fazê‑lo avançar paulatinamente rumo de Montevidéu. Ninguém sabia o que podia acontecer: quem sabe se a chamada fronteira natural, o Rio da Prata, não cairia em poder da Lusitânia, ou antes do Brasil?

Tanto Buenos Aires como Montevidéu viram tal desfecho. Assinaram imediatamente um armistício, levantando o assédio dessa última cidade. Após certo lapso de negociações entre D. João e as autoridades platinas, retrocederam as tropas portuguêsas para o Rio Grande.

Sucediam‑se novas ocorrências sob o crescente influxo da idéia de independência absoluta, proclamada em Tucumão, a 9 de julho de 1816. Explodira novamente a guerra entre as Províncias Unidas do Rio da Prata (como haviam agora sido apelidadas) e o Uruguai, onde Artigas pelejava pela liberdade absoluta de seu país, e alcançava a vitória em tôda a linha.

Tumultos, invasões, perturbações da tranqüilidade reinavam ao longo da fronteira do Rio Grande. D. João, alegando isto como motivo, embora de fato seguisse apenas sua orientação  p82 imperialista, enviou fôrças que, após muito pelejar, invadiram o Uruguai e se apossaram de Montevidéu.

Fernando VII de Espanha apressou‑se em protestar perante a Santa Aliança, mas D. João e sa diplomacia tão astuciosamente havia arquitetado seus planos, para porem as aparências de seu lado, que lograram ver triunfar suas teses perante êsse tribunal de reis. Como resultado final, o general Lécor, Barão da Laguna, chefe das fôrças portuguêsas de invasão, tanto manobrara cavilosamente e em segrêdo os elementos uruguaios que êstes, em 1821, votaram a incorporação ao Brasil. Moralmente, tal voto nenhum valor possuía, extorquido como fôra de uma nacionalidade esmagada sob a pressão de um exército estrangeiro. Era um título, entretanto, aparentemente jurídico, para emprestar fingida legalidade a uma clara violência. D. Carlota Joaquina, esquecida e posta à margem, nenhuma intervenção teria nos acontecimentos, mero episódio da conquista portuguêsa. A Inglaterra continuava silenciosa, o que nada pressagiava de bom para a política em curso.

Enquanto assim ocorria, o desdobrar dos sucessos, tanto internos quanto europeus, se tornava de mais a mais complicado.

Napoleão fôra vencido em 1814. Fernando VII ocupara o trono espanhol; legítimo Bourbon, nada esquecera e nada aprendera; absolutista como dantes, resolvera combater o liberalismo e extirpar a revolta das colônias. Reuniu‑se o Congresso de Viena; o Brasil, elevado à categoria de reino, ao mesmo nível de Portugal, fixou suas fronteiras com a porção castelhana do continente, e também com a França, na Guiana conquistada pelas tropas de D. João VI. O tráfico de escravos, condenado em teoria por tôdas as nações e um manifesto grandíloquo, ia sendo assediado por todos os lados, e ameaçava com dissídios novos as relações anglobrasileiras, pois a direção impressa pela Grã-Bretanha à repressão de tal comércio ia se tornando cada vez mais enérgica e violenta.

48. A volta de D. João a Lisboa. — Os sentimentos portuguêses quanto ao nôvo reino, a antiga colônia, tornavam‑se de dia para dia mais hostis, e a amargura crescia quanto mais D. João  p83 demorava sua volta para a Europa. A antiga metrópole sentia‑se amesquinhada, por sua vez colônia de sua antiga possessão ultramarina. O rei, um infeliz, vítima de sua covardia e do vazio de afeições que o amparassem, pela vez primeira em sua desgraçada vida achara no Rio de Janeiro o que nunca dantes florira em seus dias tormentosos: um sentimento de afeto e de gratidão, pelos benefícios trazidos ao torrão americano da monarquia.

Bem quisera aí permanecer. Sabia por demais o que lhe segredava o coração pressago, sôbre o que o esperava em Portugal: cuidados, tormentos e inexpiáveis conflitos de ambições. No Rio, tranqüilidade, segurança, afetos, nenhum motivo de alarma, eram o ambiente em que se movia. Sua relutância em mudar de sorte é fácil de compreender. Ademais, tinha tanto pavor de novamente atravessar o oceano! . . .

Contraste absoluto, D. Carlota Joaquina ansiava por partir e deixar o país onde nunca se sentira à vontade, sem amigos nem partidários, estranha ao ambiente, privada dos meios de agir para desempenhar um papel, ou ser desagradável ao marido. "Não é terra de gente" costumava dizer. Chorara ao desembarcar. Ia caber‑lhe escandalizar os brasileiros, pelo júbilo imoderado que se estampava no seu rosto no momento da partida.

De dia para dia, agravava‑se a seriedade dos acontecimentos, tanto na Europa como na América. A necessidade de um govêrno constitucional era, com raras exceções, um sentimento popular nos dois continentes. Tão longe foram as coisas em Pernambuco, que, em 1817, aí explodiu um movimento republicano; triunfou, a princípio, e três capitanias se lhe mostraram adesas; fôrças legais vindas do Sul subjugaram a rebelião.

Em Portugal começou larga agitação com êsse programa, a ponto de varrer tôdas as oposições que se lhe quiseram contrapor: essa foi a revolução do Pôrto, de 1820. Quando a notícia do movimento cartista chegou ao Rio, explodiu a satisfação geral experimentada pelo povo, e os fatos que se sucederam deram a prova do entusiasmo público, seguindo‑se a pequeno intervalo dos de Lisboa.

As capitanias começaram a eleger Juntas, em substituição dos antigos capitães-generais. Em alguns pontos, houve combate  p84 para o conseguir, mas nenhuma exceção foi tolerada. Os novos elementos governativos pertenciam, em regra, aos grupos mais liberais da sociedade; em alguns casos, em Minas Gerais por exemplo, a tendência era francamente republicana, influxo remorado da conspiração de Tiradentes, a Inconfidência.

Contudo, o absolutismo possuía raízes fundas em Portugal, mais do que o movimento constitucional, e os chefes dêste último sentiam o perigo de serem derrotados por seus adversários. Assim tomaram providências para convidarem autoridades e personagens de nota à prestação do juramento à Constituição ainda por ser elaborada. Mesmo o interregno até a feitura das novas tábuas da lei poderia ser aproveitado para restaurar o absolutismo, e por isso, a Constituição espanhola de Cádiz, de 1812, foi adotada e recebeu as adesões juradas, com caráter provisório.

No Brasil, o exemplo foi entusiàsticamente seguido. O príncipe herdeiro, D. Pedro, estava na vanguarda dos que aplaudiam o rumo dos acontecimentos. Não assim el‑rei. Odiava e temia por igual aos liberais, aos constitucionais, republicanos e pedreiros-libres, aos quais confundia na mesma classe de anarquistas. A coragem faltava‑lhe, entretanto, para resistir. Volens, nolens, jurou tudo quanto quiseram que jurasse, a tremer de pavor em todos os seus membros, a ponto de desmaiar de mêdo em determinada ocasião.

Deu‑se imediato início à tarefa de escolher os deputados à Constituinte, que vinham a ser as novas Côrtes, em Lisboa. Como diretriz geral das instruções dadas ao corpo eleito de representantes, figuravam os pontos seguintes: absoluta igualdade, tanto política como econômica, dos dois reinos; organização paralela de ambos; permanência alternativa da sede do govêrno, em ambas as margens do oceano.

Não correspondia tal programa, entretanto, aos anseios de Portugal, amargurado e invejoso da supremacia brasileira durante tantos anos. Os constituintes brasileiros foram mal recebidos em Lisboa, feitos alvos de chacota, pouco atendidos e ouvidos com acentuado desprêzo quando reclamavam ou exigiam.

Cada vez mais se tornava imprescindível a volta de D. João a Lisboa. Tôdas as influências se exerciam sôbre êle para que  p85 a apressasse. Que fazer, senão obedecer aos avisos dos que lhe diziam que sua ausência poderiam trazer catástrofes sôbre o reino? A Inglaterra era das mais interessadas e das mais enérgicas em lhe incutir no espírito a noção da necessidade de tornar à Europa; chegou a enviar uma esquadra ao Brasil, a fim de transportar o monarca. Recusou D. João, e adiou sua partida quanto pôde, achando e inventando pretextos para demorar o regresso quanto possível. Sentia, o infeliz, que findara seu tempo de sossêgo, e que se iam iniciar novos dias de transes e de inquietação. Chorava, ao embarcar na nau que o levaria ao lugar do previsto suplício. Contraste vivo, a rainha ria estrondosamente, manifestando a alegria que a dominava.

Previa, o soberano, o advento dos acontecimentos em marcha. O liberalismo era demasiado forte para ser sufocado pelos antigos processos. Deixavam no berço uma nação ainda nas faixas infantis, e voltava ao mausoléu do velho Portugal absolutista. Pressentimentos premiam‑lhe o espírito e agitavam seu sono inquieto. Difìcilmente se poderiam manter os laços de união entre os dois reinos, tão diversas eram as mentalidades, as previsões e os recursos. Ao Brasil êle queria realmente bem, mais do que ao antigo reino. Era, avant la lettre, um brasileiro, um dos melhores e dos mais dedicados à terra americana.

Era demasiado o número das fôrças dissociadoras em ação. El‑rei, astuto e previdente, sentiu que, cedo ou tarde, a criatura de Portugal, havendo ultrapassado o genitor, formaria um Estado independente.

Na véspera de partir, em 26 de abril de 1821, comunicou confidencialmente ao filho e herdeiro D. Pedro, a quem deixava no Rio como príncipe regente, o que êle previa para o futuro do reino americano, e acrescentou que, a realizarem‑se os acontecimentos que lhe pareciam iminentes, se pusesse o próprio príncipe à frente do movimento. Seria o meio de conservar o Brasil em paz, como monarquia, projeção de um Portugal-Maior, sob a égide da dinastia de Bragança.


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Página atualizada: 4 Out 13